quarta-feira, março 04, 2015

Muçulmanos europeus: castigar ou integrar?

A campanha de pânico moral e ódio que se desatou na Europa, através dos meios de comunicação, não permite fazer demasiadas matizes nem distinções e conduz diretamente à islamofobia. 12/02/2015 - Por: Dolors Comas d’Argemir * – Fonte: Sin permiso - http://www.sinpermiso.info/textos/index.php?id=7718 - Versão portuguesa de. M. Yiossuf Adamgy/Al Furqán - * Dolors Comas d’Argemir é catedrática de antropologia social da universidade pública Rovira i Virgili de Tarragona e presidente da Fundação Nous Noritzons.

Prezados Irmãos, 


Assalamu Alaikum (A paz esteja convosco):

O terrível assassinato de trabalhadores e trabalha-doras de Charlie Hebdo deu pé a reacções muito dife-rentes. Em França, Manuel Valls fez um reconhecimento inaudito ao afirmar que existe um appartheid no seu país, que contradiz os princípios republicanos. O que falhou da república, da gestão pública, que não foi capaz de integrar os seus próprios cidadãos? O que falhou para que em lugar da convivência emerja o ódio? Que barreira invisível separa os franceses que vivem nas banlieues pobres do resto da cidadania? A religião? A diferença cultural? Não será que o que diferencia é quem pode exercer a cidadania e quem não, quem se sente discriminado pelo estigma de viver num bairro pobre ou pelo estigma de ter um nome de raiz mu-çulmana? O apparheid simbólico, que tem consequências muito reais, tem que ver com as contradições, exclusões e expulsões sociais que praticamos nas sociedades europeias.

Enquanto na França analisam como podem melhorar o sistema educativo e as bases de convivência, na Espanha opta-se pela solução punitiva, modificando o Código Penal, como se o terrorismo fosse um fenômeno desconhecido na Espanha e que por isso se tivesse que adotar instrumentos novos. Mas, claro, não é qual-quer terrorismo, é o terrorismo jihadista, com qualificativo. Isto o faz diferente. Eu pensava que matar é igual a matar: rejeitável sempre, sejam quais forem os moti-vos. Mas não parece que se entenda assim. Estamos numa daquelas situações prototípicas, em que se aproveita um acontecimento que nos comoveu para endure-cer as medidas coercitivas. Substituem-se as políticas sociais pelos cárceres: esta é a opção. Porque o terrorismo jihadista não é a causa, mas a justificação para avançar para um Estado seguro e coercivo, que já é o caminho que adota a nova lei de segurança cidadã, e que agora se remata com esta lei contra o terrorismo. Segurança em troca de direitos e liberdades em defintivo. Não é anedótica a introdução da prisão perpétua (eufemisticamente reversível), porque uma vez introduzida abre a porta para que se possa aplicar a muitas outras situações. E resulta irritante a encenação do pacto entre o PP e o PSOE neste terreno, que se apre-senta como um pacto unitário, ainda que seja só entre dois partidos. Surpreendente, para além disso, que o PSOE assine um projeto de lei que diz querer levar a Tribunal Constitucional: isto não há quem entenda... Mas a foto é novamente a do bipartidismo, desacreditado e rançoso.

A campanha de pânico moral e ódio que se desatou na Europa, através dos meios de comunicação, não permite fazer demasiadas matizes nem distinções e conduz, diretamente, à islamofobia. A amálgama entre terrorismo, islamismo e islão faz-se muito facilmente. Insiste-se uma e outra vez na uniformidade dos muçulmanos, o que não tem nenhuma base real, já que a diversidade de discursos e práticas nas sociedades muçulmanas é enorme. E oculta que quem mais sofre, com muita diferença, o terrorismo jihadista são os países onde pre-domina a religião muçulmana. O socorrido argumento de que a barbárie dos assassinos tem uma base cultural é de uma falsidade estrepitosa que, para além disso, nos leva a culpabilizar indiretamente os muçulmanos europeus. É aquele “choque de civilizações” de que nos falava Huntington, que oculta as relações de poder, as exclusões e desigualdades entre povos e que em troca põe a ênfase na diferença cultural, na superioridade mo-ral de uns (“nós”) frente à barbárie dos outros (”eles”). Nisto consiste o racismo moderno: é a inferiorização dos povos utilizando a diferença cultural como argu-mento, já que desterramos a raça para o fazer. Estamos conscientes até onde nos leva isto? Não aprendemos com as experiências históricas em que se atiçou o ódio entre povos? Como podemos presumir superioridade moral enquanto esquecemos que a história da Europa está cheia de episódios de ódio e violência para com os “outros”? Que superioridade moral têm hoje os nossos governantes que optam por proteger os interesses financeiros e não os da cidadania? Que fácil é culpar os “outros” dos nossos males e iludir as próprias responsabilidades!...

Os assassinatos cometidos por determinados indivíduos ou grupos são totalmente rejeitáveis, evidente-mente, e há que circunscrever a culpa àqueles que os perpetraram. Não há que confundir a parte com o todo, os assassinos com os concidadãos que tentam viver e sobreviver nas nossas cidades e povos, muitas vezes com dificuldades. É evidente que uns e outros não com-partilham a mesma “cultura” pelo mero facto de serem muçulmanos. Porque a cultura de matar aprende-se da raiva e da exclusão. E a cultura da convivência, baseada em erradicar as desigualdades sociais, ensina- -nos quão iguais são os seres humanos.

Castigar ou integrar são opções que vão em sentido contrário. Como podemos construir uma sociedade integradora se castigamos os pobres, e castigamos-los duplamente se são muçulmanos? Como podemos construir uma Europa plural se continuamos a converter as diferenças em desigualdades? 

Obrigado. Wassalam.

M. Yiossuf Adamgy - 12/02/2015.

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