A lei existe na sociedade humana desde tempos imemoriais. Toda raça religião, e todo grupo de homens trouxe alguma contribuição a essa esfera. A contribuição feita pelos muçulmanos é tão rica quanto meritória e valiosa.
Ciência da Lei
Todos os antigos tiveram as suas leis peculiares e próprias. Entretanto, parece que jamais havia se pensado antes do Ach-Chafi'i (150-204 da Hégira/767- 820 d.C.), numa ciência da lei, abstrata na existência e distinta das leis e dos códigos. A obra desse jurista, Risála, designa essa ciência pelo expressivo título de "Raízes da Lei", advindo daí os diversos ramos da regulamentação da conduta humana.
Esta ciência, chamada daí para frente de Usul-al-Fiquih, pelos muçulmanos, trata simultaneamente da filosofia da lei, da fonte das regras, e dos princípios da legislação, interpretação e aplicação dos textos legais. Essas leis, regulamentos são chamados de "ramos" (furú) dessa árvore.
A Intenção do Ato
Entre as novidades no domínio dos conceito fundamentais da lei, podemos apontar a importância dada ao conceito de motivo e intenção (niya) dos atos. Esta noção se baseia no célebre parecer do Profeta Muhammad
(que a Paz e a Bênção de Deus esteja sobre ele);
"Os atos devem ser julgados de acordo com as intenções."
Desde então, a infração ou crime intencional e o ato involuntário, não tem sido tratados de maneira igual pelos tribunais.
Constituição Escrita do Estado
É interessante como também inspirador, observar que já na primeira revelação recebida pelo Profeta do Islam, que era uma pessoa iletrada, constava o engrandecimento do cálamo como meio de conhecimento das coisas ignoradas, e como sendo uma graça de Deus.
Não nos surpreende que quando o Profeta Muhammad
(que a Paz e a Bênção de Deus esteja sobre ele); dotou seu povo de um organismo estatal criado do nada, ele tenha promulgado uma constituição escrita para esse Estado, que era inicialmente uma cidade-estado, mas meros dez anos mais tarde, quando seu fundador morria, já se estendia por toda a Península Arábica e as partes do sul do Iraque e da Palestina.
Após outros quinze anos, durante o califado de Uthman ocorreu uma penetração fantástica dos exércitos muçulmanos na Andaluzia (Espanha) por um lado e no Turquestão chinês pelo outro, através dos países intermediários. Essa constituição escrita, preparada pelo Profeta Muhammad
(que a Paz e a Bênção de Deus esteja sobre ele); contendo 52 cláusulas, sobreviveu até os nossos dias inteira.
Ela trata de uma variedade de questões, tais como os direitos e deveres que dizem respeito ao governante e aos governados, legislação, administração da justiça, organização da defesa, tratamento de súditos não-muçulmanos, seguro social baseado na mutualidade, e outros requisitos daquela época. O Ato (Constitucional) data de 622 da era cristã, do primeiro ano da Hégira.
A Lei Internacional Universal
A guerra, que infelizmente sempre tem sido freqüente entre os membros da família humana, é a ocasião quando se está menos disposto a conduzir-se racionalmente e praticar justiça principalmente sobre os próprios súditos em favor do nosso adversário.
Como isto na verdade é uma questão de vida ou morte, uma batalha pela própria sobrevivência, na qual o menor deslize ou erro pode levar a conseqüências perigosas, os soberanos e chefes de Estado sempre reivindicaram o privilégio de decidir, a seu próprio critério, as medidas a serem aplicadas ao inimigo.
A ciência relacionada com esse comportamento dos soberanos independentes existe desde os tempos mais remotos; mas fazia parte da política e mera prudência, quando muito guiada pela experiência. Os muçulmanos parecem ter sido os primeiros a separar esta ciência da lei internacional pública das vontades e desejos mutáveis dos governantes dos Estados, e de dispô-la numa base puramente legal.
Além do mais, foram eles que deixaram para a posteridade, os tratados mais antigos existentes sobre a lei internacional desenvolvidos como unia ciência independente. Eles a chama de siyar, ou seja, conduta do soberano. E mais, nos códigos convencionais de leis, fala-se desse assunto como integrante da lei da terra.
Aliás, fala-se dele imediatamente em seguida à questão do banditismo, como se a guerra pudesse ser justificada com as mesmas razões que a ação policial contra os assaltantes de estrada. O resultado disso é que os beligerantes têm, não apenas direitos, como também, obrigações, reconhecidas pelos tribunais muçulmanos.
Características Gerais da Lei Muçulmana
A primeira coisa que espanta o leitor de um manual sobre a lei islâmica é de que ela procura regular todo o leque de atividades da vida humana, tanto no seu aspecto material como espiritual. Tais manuais começam geralmente com os ritos e práticas do culto, e discutem nesse mesmo capítulo também as questões constitucionais da soberania, uma vez que o Imam, ou seja, o chefe do estado é o líder ex-ofício das orações na mesquita,
Não devemos portanto nos espantar de essa parte também tratar dos impostos devidos ao erário; uma vez que o Alcorão freqüentemente fala sobre o culto e o imposto do zakat no mesmo versículo, tratando esse imposto como uma das formas de se louvar a Deus por intermédio do dinheiro.
Depois disso, discutem-se as relações contratuais de todos os tipos; em seguida os crimes e suas penalidades, que incluem as leis da guerra e da paz com países estrangeiros, a lei internacional e também a diplomacia; e finalmente os regulamentos que regem a herança e os testamentos.
O homem consiste de corpo e alma; e se o governo com seus enormes recursos, cuidar tão somente dos assuntos materiais, o espírito ficará esfomeado, e sendo deixado à sua própria mercê, seus recursos serão Paupérrimos em comparação com os que são disponíveis para os assuntos seculares.
O desenvolvimento desigual do corpo e da alma levarão à falta de equilíbrio do homem, cujas conseqüências serão, a longo prazo, desastrosas para a civilização. Este tratamento do todo, tanto do corpo como da alma, não implica que os não iniciados devem se aventurar nos domínios da religião, tanto quanto não se deve permitir ao poeta aventurar-se a realizar cirurgias; todo campo de ação humana deve ter seus próprios especialistas e pessoas qualificadas.
Outra característica da lei islâmica parece ser a ênfase posta na correlação do direito e da obrigação. Não somente as relações mútuas dos homens entre si, mas também a relação dos homens com seu Criador, são baseadas no mesmo princípio; e o culto não é mais que o cumprimento do dever do homem correspondente aos direitos que a providência lhe concede. Para falar somente dos "direitos do homem", sem ao mesmo tempo dar relevo aos seus deveres, seria o mesmo que transformá-lo em um animal voraz como o lobo, ou no próprio diabo.
A Filosofia da Lei
Os juristas clássicos entre os muçulmanos, põem as leis sobre a base dupla do lícito e ilícito. Deve-se praticar o que é lícito e abster-se do que é ilícito. O lícito e o ilícito são às vezes absolutos e evidentes por si, e outras vezes, apenas relativos e parciais.
Isto nos leva à divisão em cinco categorias de todas as regras jurídicas, tanto as ordens como as injunções. Desse modo, tudo que é absolutamente lícito será um dever absoluto, e devemos praticá-lo. Tudo que tem um caráter lícito preponderante é recomendável e considerado meritório.
As coisas que têm ambos esses aspectos, do lícito e ilícito, em proporções iguais, ou que não possuem nenhum dos dois, seriam deixadas ao critério do indivíduo optar se as praticasse ou se delas se abstivesse, e até de mudar tal prática de tempos em tempos.
As coisas absolutamente ilícitas seriam objeto de proibição total, e seriam repreensíveis e desencorajadas. A divisão básica dos atos ou regras em cinco categorias pode ter outras subdivisões para inserir nuances menores, tal como os indicadores do dial de um bússola que acrescentam direções compostas além dos quatro pontos cardeais principais.
Resta definir e distinguir entre o lícito e o ilícito, O Alcorão, sendo a Palavra de Deus e um livro sagrado para os muçulmanos, fala dessas coisas em multas ocasiões, dizendo-nos sempre que devemos praticar o ma'ruf e nos abster domunkar. Ora, ma'ruf quer dizer um ato lícito que é reconhecido como tal por todos, até pela própria razão, e, portanto, é lícito. Enquanto munkar significa aquilo que é rejeitado por todos por não ser de modo algum bom, um mal que é reconhecido como tal por todos; e aquilo que até a própria razão reconhece como mal, deve ser proibido.
Uma grande parte da moralidade do Islam está contida neste domínio; e são raros os casos em que o Alcorão proíbe algo a respeito de que exista qualquer divergência de opinião humana, tal como a proibição de bebidas alcoólicas, ou de jogos de azar; mas para dizer a verdade, a razão de ser da lei, mesmo em tais casos, jamais é negada às mentes lúcidas e férteis. Na prática, isto é uma questão de confiança na sabedoria e inteligência do Legislador, cujas diretrizes em todos os demais casos não tem causado senão a aprovação universal.
As Sanções
Encontram-se entre os membros da raça humana os mais variados temperamentos, e estes podem ser agrupados em três grandes categorias: a daqueles que são bons e resistem a quaisquer tentações do mal, sem precisar de serem compelidos a tanto; a daqueles que são maus, e procuram, por todos os, meios, fugir de toda e qualquer vigilância; e finalmente, a daqueles que se comportam de maneira adequada só enquanto temem as conseqüências, mas que se permitem praticar o ilícito também quando são tentados, quando há uma maior ou menor probabilidade de escaparem ilesos de qualquer represália.
Infelizmente, o número dos indivíduos da primeira categoria é muito limitado; estes não precisam nem de guias nem de sanções contra a violação de leis. As outras duas categorias necessitam de sanções em benefício da sociedade. A disposição do espírito de causar danos a outrem pode ser uma doença, um resquício de animalidade criminosa, resultado de uma má educação, ou ser devida a outras causas.
Um esforço terá de ser feito para controlar e neutralizar o dano que possa ser causado por homens da segunda categoria, cujo número felizmente também não é muito grande. Resta a terceira categoria, intermediária, e que é constituída pela grande maioria dos homens. Estes necessitam de sanções, mas de que espécie?
Vale dizer que se o próprio chefe tivera uma consciência pesada, por ter cometido alguma coisa proibida, ele teria pouca disposição para repreender outros a respeito da mesma coisa. Portanto, o Islam atinge a raiz e a fonte desse tipo de mal, e declara que ninguém está isento das obrigações, nem mesmo o soberano, nem o próprio profeta.
Os ensinamentos, como a própria prática do Profeta Muhammad
(que a Paz e a Bênção de Deus esteja sobre ele); seguidos pelos seus sucessores, exigem que o chefe do Estado deve ser plenamente capaz de ser intimado a comparecer perante os tribunais do país, sem qualquer restrição. A Tradição Islâmica tem sido a de os juízes jamais hesitarem na prática de decidirem contra os seus soberanos em casos de prevaricação.
É desnecessário mencionar-se pormenorizadamente as sanções materiais que existem no Islam, como também em todas as outras civilizações. Por isso existem funções públicas que são encarregadas de manter a lei e a ordem, de vigiar e de custodiar, de cuidar da paz e da tranqüilidade das relações de convívio dos habitantes do país e assegurar de que qualquer pessoa que seja vitimada por violência, possa reclamar diante dos tribunais e que a polícia traga os acusados a comparecerem para responder perante os juízes, bem como de que seja finalmente executada a decisão destes.
Mas a concepção de sociedade que o Profeta Muhammad
(que a Paz e a Bênção de Deus esteja sobre ele); tinha, acrescentou ainda uma outra sanção, talvez mais eficaz que a sanção material, e que é a sanção espiritual, Mantendo toda a parafernália administrativa da justiça, o Islam impressionou nas mentes dos seus seguidores a idéia da ressurreição após a morte, o juízo Final e a salvação ou condenação por esse juízo Final.
E é assim que o crente cumpre suas obrigações mesmo quando ele tem a oportunidade de as violar impunemente, e se abstém de causar danos aos outros apesar de todas as tentações e de contar seguramente estar livre de qualquer risco de represália.
Essa tríplice sanção por qual os governantes são sujeitos em condições de igualdade à lei geral, às sanções materiais e também às sanções espirituais, cada elemento servindo para fortalecer a eficácia do anterior, tenta assegurar no Islam a observância máxima das leis e a realização plena dos direitos e deveres de todos.
A Legislação
Para melhor compreender as implicações da afirmação de que Deus é o supremo Legislador, precisamos meditar sobre os diversos aspectos da questão.
O Islam acredita no Deus Único, o Qual não só é o Criador de todas as coisas, mas também o Provedor, o sine qua non da existência de todo o universo. Ele não é "posto no rol de aposentados" após ter criado tudo que Ele criou. O Islam acredita mais, que Deus transcende muito além da percepção física do homem, e de que Ele é Onipresente, Onipotente, Justo e Misericordioso.
Além de, por Sua clemência ilimitada, ter Ele dado ao homem não somente a razão como também de ter mandado mensageiros escolhidas entre os próprios homens, instruindo quais as direções que são mais sábias e mais úteis à sociedade humana. Deus é Transcendente, Ele envia as Suas mensagens aos Seus escolhidos por meio de portadores de mensagens celestiais intermediários.
Deus é Perfeito e Eterno. Entre os homens, pelo contrário, há unia constante evolução. Deus não muda as Suas opiniões, mas exige dos homens somente aquilo de que são capazes dentro das suas capacidades individuais. É por isso que há divergências, pelo menos em certos detalhes, entre as legislações, que reivindicam para si próprias o de serem baseadas nas revelações Divinas. Em assuntos legislativos, a última lei revoga e substitui as que a antecederam; o mesmo é verdadeiro com respeito às revelações Divinas.
Entre os muçulmanos, o Alcorão, que é um livro escrito na língua árabe, é a Palavra de Deus, uma revelação Divina recebida pelo Profeta Muhammad
(que a Paz e a Bênção de Deus esteja sobre ele); e destinada aos seus seguidores. Além disso, em sua qualidade de Mensageiro de Deus, Muhammad
(que a Paz e a Bênção de Deus esteja sobre ele); explicou o texto sagrado, e acrescentou outras diretrizes que estão registradas nas Tradições ou coleção dos seus relatos, ditos e atos.
Seria desnecessário dizer que as leis promulgadas por determinada autoridade só podem ser revogadas por ela mesma ou por uma autoridade superior, mas nunca por uma menor. Assim, a revelação Divina só pode ser revogada por uma outra posterior revelação Divina. Do mesmo modo, as diretrizes do Profeta só podem ser modificadas por ele próprio ou por Deus, mas não por qualquer dos seus discípulos ou outros. Mas este aspecto teórico de rigidez se transforma numa prática bastante elástica no Islam, para que os homens possam adaptar-se às exigências e às circunstâncias:
1) As leis, mesmo aquelas de origem Divina ou emanadas do Profeta, não têm, todas elas, o mesmo âmbito. Já vimos que somente algumas delas são obrigatórias; outras são apenas recomendadas, enquanto no restante dos casos, a lei permite' ampla extensão aos indivíduos. Um estudo das fontes mostrará que as regras da primeira categoria a das obrigatórias, são muito poucas; as recomendações são em número um pouco maior; e os casos em que o texto é silente são inúmeros;
2) Uma autoridade inferior não modifica a lei, mas pode interpretá-la. O poder da interpretação não é monopólio de qualquer pessoa no Islam; qualquer um que tenha feito um estudo especial da matéria tem o direito de fazê-lo. Uma pessoa doente jamais irá consultar um poeta, nem mesmo um que tenha sido laureado com o prêmio Nobel; para se construir uma casa, não consultamos um cirurgião, e sim, a um engenheiro; do mesmo modo, para as questões legais, precisamos estudar as leis e aperfeiçoar nosso conhecimento do assunto; a opinião das pessoas não qualificadas será apenas aventureira. As interpretações dos especialistas mostram as possibilidades de adaptar até a lei Divina às circunstâncias; por Muhammad
(que a Paz e a Bênção de Deus esteja sobre ele); ter sido o derradeiro dos profetas e ter deixado este mundo como qualquer mortal, não há mais nenhuma possibilidade de receber uma nova revelação de Deus para decidir problemas surgidos pela divergência das interpretações. Devem evidentemente existir tais divergências, pois nem todos os homens pensam do mesmo modo. Pode-se ressaltar que os juízes, jurisconsultos e outros juristas também são seres humanos; e se eles divergem entre si, não será o público em geral o que terá maior autoridade de decisão. Num litígio judicial, deve ser obedecido o juiz-, em outros casos, as escolas que se dedicam ao estudo e interpretação das leis recebem a preferência aos olhos dos que seguem a respectiva escola e assim por diante;
3) Foi o próprio Profeta Muhammad
(que a Paz e a Bênção de Deus esteja sobre ele); quem enunciou a regra de que; "Meu povo jamais será unânime em relação a um erro". Tal consenso tem grandes possibilidades de desenvolver a lei islâmica, e adaptá-la de acordo com a mudança das circunstâncias;
4) Um famoso incidente da vida do Profeta Muhammad
(que a Paz e a Bênção de Deus esteja sobre ele); merece ser relatado aqui, Moaz Ibn Jabal, um juiz designado do Iêmen, visitou o Profeta para se despedir dele antes de seguir para o seu posto. A seguinte conversação teve lugar entre os dois: "Com que fundamentação irás decidir os litígios? De acordo com as previsões contidas no Livro de Deus (o Alcorão)! E se não encontrares nenhuma provisão nele? - Então de acordo com a conduta do Mensageiro de Deus (Muhammad)! - E se nem aí encontrares exemplo apto? - Bem, então usarei a minha própria diligências. O Profeta ficou tão feliz com estas respostas que, longe de repreendê-lo, exclamou: "Deus seja louvado, Que guiou o mensageiro do Seu Mensageiro ao que mais agrada o Mensageiro de Deus!"
Esta diligência pessoal de opinião e bom-senso por parte de um homem honesto e consciencioso não só é uma maneira de desenvolver a lei, mas também um recipiente da bênção do Profeta;
5) Podemos recordar que, na legislação de um problema novo, na interpretação de um texto sagrado, ou em qualquer outro caso de desenvolvimento da lei islâmica, mesmo quando isto tenha sido feito com base numa consulta de consenso, sempre há a possibilidade de que uma regra adotada num processo venha a ser substituída por outra regra, por outros juristas que se utilizem dos mesmos métodos.
A história tem demonstrado que o poder de "legislação" deve, no Islam, ser confiado a sábios particulares, para que estes estejam isentos da interferência oficial. Tal legislação não deverá sofrer a influência da política quotidiana, nem atender a interesses de quaisquer pessoas em particular, mesmo que essa seja um chefe do Estado.
Os juristas, sendo todos iguais, cada um deles pode livremente criticar a opinião do outro, tornando possível, desse modo, o exame de todos os aspectos de relevo de um problema, quer de pronto, quer no curso de gerações seguintes, até que se alcance a melhor solução.
Vimos assim que a origem divina da legislação islâmica não a torna despropositadamente inflexível. O que é mais importante ainda é que esta qualidade de origem divina da lei inspira aos fiéis um respeito maior pela lei, tornando possível ser ela observada mais consciente e escrupulosamente. Podemos acrescentar que os juristas dos tempos clássicos haviam declarado unanimemente que: "Tudo que os muçulmanos consideram bom, o é também aos olhos de Deus."
Mesmo que isso não se refira a qualquer dito do próprio Profeta. O consenso, à luz de tal interpretação, implica que mesmo as conclusões dos sábios leigos, envolve aprovação Divina, um fato que só acrescenta ao respeito pela lei aos olhos dos homens.
A Administração da Justiça
Uma característica da legislação alcorânica neste sentido é a autonomia judiciária das diferentes comunidades componentes. Longe de impor a lei alcorânica a todos, o Islam admite e até encoraja que cada grupo, cristão, judeu, masdeísta, ou de outros, mantenha seus próprios tribunais, presididos por seus próprios juízes, de sorte a que se apliquem as suas próprias leis em todos os ramos do direito, civil como criminal.
Se as partes em disputa pertencerem a comunidades diferentes, uma espécie de lei internacional privada decide o conflito entre as leis. Ao invés de buscar a absorção e assimilação de todos dentro da comunidade "governante", o Islam protege os interesses de todos os seus súditos.
Quanto à administração da justiça entre os muçulmanos, a parte de sua simplicidade e rapidez, a instituição da purificação das testemunhas merece ser mencionada.
Note-se que, na realidade, os tribunais de todas as localidades, organizam arquivos que registram a conduta e hábitos de todos os habitantes, para saber sempre que necessário, se uma testemunha é confiável.
Não se deixa por conta da outra parte apenas derrogar o valor de um testemunho. O Alcorão diz que, se alguém ataca a castidade de uma mulher e não prova sua acusação pelos meios exigidos pelo tribunal, essa pessoa não somente é punida, mas passa a constar, para sempre, como indigna de testemunhar nos tribunais.
Origem e Desenvolvimento da Lei
O Profeta Muhammad
(que a Paz e a Bênção de Deus esteja sobre ele); ensinou dogmas teológicos aos seus seguidores; ele também lhes deu leis referentes a todas as atividades da vida, individuais ou coletivas, seculares assim como espirituais; além disso, ele criou um Estado a partir do nada, ao qual ele administrou, organizou exércitos aos quais comandou, estabeleceu um sistema diplomático e de relações exteriores ao qual controlou; e, se surgiam litígios, era ele quem os decidia para os seus "súditos".
Portanto, é à figura dele mais do que qualquer outra, que devemos nos voltar para estudar a origem da lei islâmica. Ele nasceu de uma família de mercadores e caravaneiros domiciliados em Makkah. Em sua juventude, ele havia visitado as feiras e mercados do Iêmen e da Arábia Oriental assim como da Palestina.
Seus contemporâneos costumavam também viajar para o Iraque, Egito e Abissínia para comerciar. Quando ele iniciou sua vida missionária, a violenta reação dos seus compatriotas obrigou-o a se exilar e domiciliar-se em outra cidade, Madina, onde o principal meio de subsistência dos habitantes era a agricultura.
Ali ele organizou a vida estatal; estabeleceu primeiro uma cidade-estado, que foi gradativamente transformada em um Estado que se estendia, à época de sua morte, por toda a Península Arábica além de algumas partes do Sul do Iraque e da Palestina.
A Arábia era atravessada por caravanas internacionais. É bem conhecido que os Sassânidas e os Bizantinos haviam ocupado algumas regiões da Arábia, e estabelecido colônias ou protetorados. As feiras, principalmente as da Arábia Oriental, atraíram mercadores da índia, China, e "do Leste e do Oeste", como descreveram Ibn Al-Kalbi e Al-Mas'udi.
Na Arábia não havia somente nômades, mas também povos sedentários como os Iamanitas e os Lihianitas, que haviam desenvolvido civilizações que datavam desde muito antes da fundação das cidades de Atenas e de Roma.
As leis que prevaleciam no país foram transformadas com a chegada do Islam em atos estatais de legislação; e o Profeta detinha, de parte de seus seguidores e súditos, a prerrogativa não só de modificar os velhos costumes, mas também de promulgar leis completamente novas.
Sua condição de Mensageiro de Deus era a razão principal do imenso prestígio de que desfrutava. Tanto era assim, que, não apenas o que ele dizia, como todos os seus atos, tornavam-se lei para os muçulmanos em todas as sendas da vida; até o silêncio dele implicava que ele não se opunha a algum costume que fosse praticado à sua volta por seus seguidores.
Essa fonte tríplice de legislação sejam, sua palavras, que se baseavam sempre nas revelações Divinas, seus atos e sua aprovação tácita das práticas e costumes de seus seguidores, tem sido preservada para nós no Alcorão e nas tradições. Ainda em vida dele, começou a germinar uma outra fonte ainda, constituída das deduções e elaborações das regras, nos casos em que a legislação silenciosa, o que era feito pelos juristas que não fossem chefes de Estado.
Havia juízes e jurisconsultos ao tempo do Profeta, até na metrópole, para não se falar dos centros administrativos das províncias. já mencionamos as instruções levadas por Moaz quando este foi enviado ao Iêmen como juiz. Havia casos em que os funcionários das províncias requeriam instruções do governo central, o qual também tomava a iniciativa e intervinha nos casos de decisões incorretas de seus subordinados, sempre que estas chegavam ao conhecimento da autoridade mais alta.
A ordem para alterar ou modificar os costumes e práticas antigas, ou para a islamização da lei de todo o país, só poderia se consolidar gradativamente, por que os juízes não intervinham senão nos casos que lhes eram submetidos; devem ter sido numerosos os casos que não lhes foram submetidos, sendo resolvidos pelos litigantes de acordo com a conveniência destes, à parte da lei.
A morte do Profeta marca o cessar das revelações Divinas que possuíam a força de ordenar toda a lei, revogando ou modificando todos os costumes ou práticas antigas. Daí em diante, a comunidade muçulmana se viu obrigada a se contentar com a legislação já passada pelo Profeta, e com os meios autorizados para o desenvolvimento da lei autorizada pela própria legislação.
Dessas (leis reveladas), as mais importantes talvez tenham sido as seguintes. Por diversas vezes, o Alcorão, depois de instituir determinadas proibições, acrescenta explicitamente que tudo o mais é lícito (no domínio envolvido). De maneira que, tudo aquilo que não contraria a legislação emanada do Profeta, é permissível, constituindo-se em lei positiva.
As leis e até os costumes de países estrangeiros sempre serviram de matéria prima aos juristas muçulmanos, de onde eles extraíam aqueles que eram incompatíveis com o Islam, considerando lícitos os demais. Essa fonte é permanente.
Outra fonte, talvez surpreendente, é a diretriz fornecida pelo Alcorão, de que as revelações Divinas recebidas por profetas anteriores e cita diversos, como por exemplo, Enoch, Noé, Abraão, Moisés, Davi, Salomão, Jesus Cristo, João Batista (que a Paz esteja sobre eles); são também válidas para os muçulmanos.
Porém que essa diretriz se restringia às revelações comprovadas sem margem de dúvida, isto é, aquelas explicitamente reconhecidas pelo Alcorão ou pelas tradições. A lei do talião do Pentateuco é um caso mencionado no Alcorão.
Passados apenas quinze anos da morte do Profeta, vemos os muçulmanos governando em três continentes, em vastos territórios da Ásia e da África, e na Andaluzia na Europa. O Califa Umar achou que o sistema fiscal dos sassânidas era bom e o manteve nas províncias do Iraque e do Irã; já o sistema fiscal dos bizantinos ele achava opressivo, por isso modificou-o na Síria e no Egito; e assim por diante.
Todo o primeiro século da Hégira foi um período de adaptação, consolidação e transformação. Os documentos escritos em pergaminhos encontrados no Egito nos informam de muitos aspectos da administração egípcia. já a partir do segundo século da Hégira, passamos a ter códigos de leis, compilados por juristas privados, tendo um dos primeiros sido o de Zaid Ibn ‘Áli, que morreu no ano 120 da Hégira.
Os antigos chamavam o Iêmen de "Arábia Felix", e não sem uma razão. Suas condições gerais e físicas, deram-lhe na antigüidade pré-cristã, uma superioridade incomparável sobre as outras regiões da Arábia, no que diz respeito à cultura e civilização; sua riqueza, testada pela Bíblia, era legendária, e seus reinos, poderosos.
No início da era cristã, uma onda de emigração levou certas tribos Iamanitas para o Iraque, onde elas fundaram o Reino de Hira, que ficou célebre por estimular as letras, e que continuou a existir até a aurora do Islam. Nesse meio tempo, o Iêmen conheceu o domínio dos judeus (sob domínio de Dhul-Nawas); a dominação cristã (pelos abissínios), seguida da ocupação do Irã pelos masdeístas ou parsis, que, por sua vez deram lugar ao Islam.
Os Iamanitas, influenciados por todas essas sucessivas interações e tensões, foram persuadidos pelo Califa Umar a emigrarem novamente para o Iraque para colonizá-lo, especialmente a região de Kufa, que era uma cidade nova construída sobre as ruínas da antiga Hira. Umar enviou Ibn Mas'ud, um dos mais eminentes juristas de entre os companheiros do Profeta, para organizar lá uma escola.
Seus sucessores nessa escola, Ibrahim An- Nakhai, Hammád, e Abu Hanifa foram todos, graças ao acaso da providência, especialistas em leis. Entrementes, ‘Ali, outro grande jurista dentre os companheiros do Profeta, transferiu a sede do califado de Madina para Kufa. Não é de surpreender, portanto, que esta cidade tornou-se o berço de tradições ininterruptas, adquirindo uma reputação crescente em matéria de leis.
A ausência de qualquer interferência de autoridade central na liberdade de opinião dos juízes e juristas, provou favorecer enormemente o rápido progresso dessa ciência; mas também tinha suas inconveniências. Na realidade, um administrador experimentado e altamente conceituado como Ibn Al-Mukaffa’ reclamava, no início do segundo século da Hégira, da existência de uma quantidade enorme de divergências nas leis muçulmanas casuísticas, penais, leis da condição pessoal e outros ramos da legislação, especialmente em Hira e Kufa; e sugeriu ao Califa a criação de uma instituição superior para a revisão das decisões do judiciário, visando a imposição de uma lei única e uniforme em todas as partes do reino.
A sugestão foi abortiva. Seu contemporâneo, Abu Hanifa, cioso da liberdade da ciência, e zeloso de mantê-la a distância dos tumultos da política continuamente mutante, criou, ao invés, uma academia do direito. Composta de quarenta membros, sendo cada um especialista em alguma ciência relacionada com o direito, tal como a exegese do Alcorão, das tradições, a lógica, a lexicologia, etc.
A academia dispôs-se a uma profunda avaliação da legislação casuística da época, e empreendeu a codificação das leis, ela tentou também preencher as lacunas das leis muçulmanas a respeito de pontos sobre os quais não existiam nem precedentes no direito casuístico, nem textos que emitissem um parecer aplicável. Um dos seus biógrafos afirma que Abu Hanifa (falecido em 150 da Hégira) havia promulgado meio milhão de regras (ver Almuwaffak, 11, 137).
Málik em Madina, e Al-Auza'i na Síria, empreenderam ao mesmo tempo um trabalho semelhante, porém eles dependiam somente de seu próprio conhecimento exclusivo e recursos pessoais. Se Abu Hanifa enfatizava a racionalização independente de recurso ao Alcorão e às tradições como bases da lei Málik preferia espelhar-se na população de Madina cidade impregnada pelas tradições do Profeta para emitir suas interpretações dedutivas ou lógicas.
O Alcorão foi "publicado" apenas alguns meses após a morte do Profeta. A tarefa de coligir os ditados e atos do Profeta bem como os exemplos de sua aprovação tácita da conduta de seus companheiros, material esse que é chamado por tradições, foi empreendida por algumas pessoas ainda estando vivo o Profeta, e posteriormente, após sua morte, por muitas outras pessoas.
Mais de cem mil dos companheiros do Profeta deixaram valiosas tradições para a posteridade, baseadas em tudo que pudessem lembrar sobre o assunto. Alguns transcreviam essas recordações e outros as transmitiam oralmente. O material de grande valor legislativo estava naturalmente disperso pelos três continentes onde os companheiros do Profeta haviam-se domiciliado no tempo dos califas Umar e Uthman.
Nas gerações que se seguiram, os pesquisadores compilaram tratados, inclusive mais abrangentes, baseados na amálgama das coleções de memórias pessoais dos Companheiros do Profeta.
A avaliação da lei casuística e a codificação das tradições foram completadas como obras paralelas na mesma época, porém uma ignorava e colocava em suspeição a outra. Ach-Cháfi'i nasceu no ano em que Abu Hanifa morreu.
As diferenças mútuas ou polêmicas levaram os juristas a buscar um conhecimento mais profundo das tradições, e os especialistas em tradições a catalogar os dados sobre os ditados e atos do Profeta, a avaliar os méritos individuais de suas origens de transmissão, e a determinar o contexto e a época dos ditos do Profeta para deduzir o conteúdo legislativo deles.
Ach-Cháfi'i especializou-se simultaneamente em direito e nas tradições, e graças às suas elevadas qualidades intelectuais e sua diligência, foi possível descobrir uma síntese entre as duas disciplinas. Ach-Cháfi'i foi o primeiro, na história mundial, a criar uma ciência abstrata do direito, distinguíndo-a das leis no sentido estrito de regras aplicadas em um país.
Outra grande escola (ou tradição) de direito foi fundada por Jaafar As-Sádik, descendente de ‘Ali e contemporâneo de Abu Hanifa. A evolução do direito de herança nessa escola, de um modo especial, deveu-se mais a razões de caráter político. Abu Hanifa, Málik, Ach-Cháfi'i, Jaafar As-Sádik e diversos outros juristas, deixaram, cada um, sua própria escola de direito.
Os seguidores dessas escolas formam sub-comunidades do Islam nos tempos atuais, porém, as diferenças que existem entre estas, tem menos influência ainda que a das escolas filosóficas. Com a passagem dos séculos, tornou-se uma experiência comum constatar que alguns Chafi'itas divergem de Cháfi'i em certos pontos da lei, concordando sobre estes com Málik ou com Abu Hanifa, e vice-versa.
Como acabamos de ver, o Império Muçulmano se estendeu desde logo através de imensos territórios, que eram anteriormente governados por diferentes sistemas legais, como por exemplo, os iranianos, os chineses, os hindus, os bizantinos, godos e outros, e a estes foram acrescentadas as contribuições locais dos primeiros muçulmanos da Arábia.
A possibilidade de qualquer sistema legal estrangeiro em especial, ter o monopólio de influenciar o direito muçulmano está, portanto excluída. Entre os fundadores das escolas também constatamos que Abu Hanifa era de origem persa e Málik, Ach-Cháfi'i e Jaafar As-Sádik eram árabes. O biógrafo Ad-Dhahabi relata que Al-Auza'i vinha originalmente do Sind; e nas gerações subseqüentes, surgiram juristas muçulmanos em todas as raças.
O desenvolvimento do direito muçulmano foi portanto um empreendimento ‘’internacional’’, no qual participaram juristas muçulmanos de variadas origens étnicas, falando idiomas diferentes, e seguindo costumes diferentes.
É um fenômeno constatado em todos os países que certos chauvinistas, e aqueles que carecem de um pensamento independente, desejam sacrificar o espírito, se apegando à letra dos mestres antigos, enquanto outros se aventuram no inconformismo.
São os meio-termos que, entretanto devem prevalecer! Um espírito sem complexo de inferioridade, mas munido das informações necessárias, e dotado ao mesmo tempo da devoção de um crente praticante, nunca terá dificuldade em reconhecer que a interpretação não só é prática, como razoável, a ponto de ser capaz até de modificar as opiniões defendidas pelos antigos. Repare a convicção e segurança com que o grande jurista Pazdawi nos diz que não só as opiniões pessoais, como até o consenso dos tempos antigos, podem ser modificados por um consenso moderno.
Conclusão
O direito muçulmano começou como a lei do estado e da comunidade governante, e serviu aos propósitos dessa comunidade enquanto o domínio muçulmano cresceu em dimensões e se estendeu desde o Atlântico ao Pacífico. Ele tinha urna capacidade inerente para se desenvolver e se adaptar às contingências do tempo e do clima. Ele não perdeu o seu dinamismo nem mesmo nos dias atuais; na realidade, está recebendo um reconhecimento cada vez maior como força ativa para o bem, dos países muçulmanos que estiveram antes sob o domínio estrangeiro político e conseqüentemente, jurídico e que atualmente estão tentando reintroduzir a Chari'ah em todas as atividades da vida.
Fonte: islam.org.br