Esclarecimento ao artigo intitulado - «Angola, a caminho de uma República Islâmica?
Por M. Yiossuf Mohamed Adamgy
Num artigo de opinião, intitulado «Angola, a caminho de uma República Islâmica?», publicado na Revista ÁFRICA21 - nº. 83, de MARÇO 2014, pág. 38/39 [amavelmente enviada pelo Dr. Liakatali Laher, assíduo leitor da Revista Al Furqán], Alves da Rocha (joserocha.ucan@gmail.com), professor associado da Universidade Católica de Angola, a dado passo, um pouco tendencionalmente e, quiçá, manifestando grande desconhecimento sobre a respectiva temática, permite-se a escrever o seguinte:
«A palavra islão significa submissão total a Alá, seus princípios, suas regras e suas deter-minações que dão corpo ao que se pode considerar o fundamentalismo islâmico: submissão da mulher, perseguição dos cristãos, assassinato de dissidentes, proibição de abandonar a religião, obrigatoriedade de todos os membros da família pertencerem e praticarem a religião, intolerância, supremacia da religião sobre a política (sociedade civil), violência, não-aceitação de críticas (a verdade absoluta é o islão), poligamia dos homens, etc.».
Ora estas várias afirmações (maioria das quais são mitos sobre o Islão) do Sr. Alves da Rocha merecem um esclarecimento. Por isso, aos poucos, semanalmente, irei, em artigos, debruçar-me a respeito das temáticas acima sublinhadas. Começarei, nesta primeira parte, por fazer uma introdução geral dos mitos existentes sobre o Islão.
Inicio por dizer que existem vários mitos hostis em torno do Islão propagados pelos “média” ocidentais. Os meios de comunicação ocidentais, em geral, nunca foram simpáticos para com o Islão, mas depois do 11 de Setembro, tornaram-se francamente hostis e não foram tímidos na divulgação de todos os tipos de mitos. O factor sionista não pode também ser ignorado. Por último, não devemos ignorar o papel que os extremistas muçulmanos têm em desacreditar o Islão através do seu próprio vergonhoso papel.
Geralmente as pessoas formam as suas opiniões sobre qualquer assunto, lendo os títulos dos jornais. E os títulos dos jornais tendem a ser sensacionalistas. Os acontecimen-tos de 11 de Setembro deram aos jornais mais uma opor-tunidade para lançarem notícias sensa-cionalistas sobre a ideologia islâmica. Mesmo os cientistas sociais e que se encontram a estudar o Islão na Europa Ocidental, grande parte deles apresenta o mundo islâmico como religião de violência e fanatismo.
Além disso, o Islão é declarado como anti modernista, anti ciência, anti mulheres e anti democracia. Se os meios de comunicação não o fazem, pelo menos os cientistas e estudiosos deviam ser capazes de fazer a distinção entre o que uma religião ensina e como as estruturas do poder condicionam o comportamento dos
crentes. Mas a maioria dos estudiosos ocidentais tam-bém não faz tais distinções e a responsabilidade de tudo o que acontece numa sociedade muçulmana é atribuída ao Islão.
A religião encontra o seu próprio nível numa dada socie-dade. Assim, é preciso compreender a estrutura social, tanto quanto a fé religiosa.
A religião não é praticada num vácuo, é praticada em condições históricas concretas e sociais.
Se os países muçulmanos não têm a democracia nem as instituições políticas modernas, não é por causa do Islão, mas porque esses países têm uma estrutura social feudal.
Não há nada no Alcorão ou nos ensinamentos islâ-micos que se oponha à democracia ou à governabilidade demo-crática.
Nenhum país muçulmano teve a revolução industrial, sem a qual não é possível ter governabilidade democrática genuína.
A maioria dos países islâmicos foi colonizada pelos países ocidentais e são esses países, que impingiram uma ou outra forma de ditadura, monarquia e os movimentos democráticos em seus próprios interesses.
Os EUA e aliados apoiaram as monarquias, os shei-ques ou os ditadores militares nesses países muçul-manos. Agora culpam o Islão pela falta de democracia nesses países.
O Alcorão requer que o Profeta Muhammad [Maomé] (p.e.c.e.) consulte os seus companheiros em todas as questões seculares (3:159) e os muçulmanos devem consultar-se mutuamente nesses assuntos (42:38). Assim, o Alcorão incentiva claramente as instituições de-mocráticas e isso foi necessário quando o mundo ainda não tinha conhecido a democracia para todos. No entanto, a sociedade pré-moderna não estava preparada para a governação democrática e os muçul-manos estavam sob a influência Romana e das insti-tuições Sassânidas, pelo que a monarquia se desen-volveu no mundo islâmico. O Islão, nesses países, foi totalmente feudalista e continua a sê-lo na ausência da revolução capitalista contemporânea.
Quem estudar o Alcorão com cuidado e imparcialidade vai considerá-lo moderno, liberal e humano na abordagem. Sublinha a dignidade humana (17:70), a liberdade de pensamento (2:256) e a igualdade de todos os seres humanos, sem qualquer discriminação com base na raça, credo, língua, povo ou cor e como estas distin-ções são apenas para diferenciar as iden-tidades, e não para a discriminação (49:13). Estes são os ideais mais modernos e parte da declaração de direitos humanos da ONU de 1949.
O Profeta Muhammad (p.e.c.e.) repetidas vezes exor-tou os seus seguidores a não discriminarem entre árabes e não árabes. Os muçulmanos nunca praticaram o racismo e de-ram direitos iguais aos negros desde o início. Os países oci-dentais praticaram o racismo recen-temente e ainda não es-tão completamente livres da discriminação racial. O Profeta Muhammad (p.e.c.e.) designou Bilal, um escravo negro, entretanto libertado, como seu “muazzin” (aquele que faz chamamento para a oração), uma grande honra a que muitos dos seus ilustres companheiros foram aspirantes.
O Islão, como o mito popular indica, “é uma religião de violência, a religião da Jihád”. Isso está longe de ser verdade. Ao contrário do que esse mito indica, o Islão é uma religião de amor e compaixão, tanto em qualquer outra religião, como o budismo ou o cristianismo. É ver-dade que o Islão apareceu numa sociedade mais violen-ta e o Profeta Muhammad (p.e.c.e.) teve de enfrentar uma oposição vio-lenta, não tendo sido fácil estabelecer a paz na sociedade. É necessário encarar-se a situa-ção nas condições históricas concretas e tentar-se ir mais além.
O objectivo principal do Islão foi o de estabelecer uma sociedade justa e complacente, mas os muçulmanos tam-bém tiveram de responder a determinadas agressões. O Alcorão não glorifica a violência, mas permite que ela relutantemente aconteça nesta situação, tornando-se claro para os muçulmanos a proibição da agres-são, pois Allah não gosta de agressores (2:190). Além disso, o Alcorão exige que os muçulmanos lutem para libertar os homens, mulheres e crianças mais fracas dos opressores (4:75).
O Alcorão nunca permitiu a guerra de agressão e nunca permitiu que os muçulmanos matassem uma só alma, uma vez que isso significa matar toda a humanidade e ensinou- -os a salvar a vida de inocentes, na medida em que salvar uma vida inocente significa salvar a humanidade inteira (5:32). Se todos muçulmanos tivessem seguido esse ensi-namento do Alcorão, teriam sido um grande exemplo para a paz e para a não-violência, mas para a violenta sociedade Árabe daquele tempo era muito difícil seguir esse ensi-namento exemplar do Alcorão.
Algumas pessoas, quer por ignorância ou com intenção deliberada de o fazer, citam o versículo 9:5 do Alcorão que exige aos muçulmanos que “vão emboscar os idólatras e matá-los até que eles acreditem”. Está longe de ser o caso. Este versículo refere-se, contex-tualmente, aos idólatras que quebraram a sua promessa com os muçulmanos e os atacaram. Naturalmente, o Alcorão, em determinadas con-dições, requer aos muçulmanos a guerra contra a traição, até que os desleais se arrependam, voltem a abraçar o Islão, façam a oração e paguem a taxa dos pobres. Mas certamente não é a descrença uma justificação para matar alguém ou forçá-lo com a espada a abraçar o Islão. O versículo seguinte (9:6) desmente essa hipótese. Esse versículo estabelece claramente que se os idólatras depuserem as armas e procurarem protecção, deve-lhes ser propor-cionada protecção e devem ser levados para um local de segurança para que nenhum mal lhes chegue.
Infelizmente, este versículo não é conhecido e somente é citado o versículo anterior (ou seja, o 9:5) para erradamente “provar que o Islão é uma religião violenta e ensina os seus seguidores a matarem os não-crentes ou a convertê-los utilizando a espada”.
Outro aspecto do Alcorão que alguns estudiosos muçulmanos muitas vezes desconhecem, é o aspecto transcendente dos ensinamentos do Alcorão. O Alcorão toma uma atitude realista do existente, mas não se limita a ele, quer pois ir além de determinada situação e deseja criar um ideal baseado em valores mais elevados. Se exorta os muçulmanos a defenderem-se com armas se forem atacados, também requer que os muçulmanos trabalhem para estabelecer a justiça, tolerância e paz para que a humanidade possa florescer.
Não pretende a guerra e a violência, mesmo em casos de defesa, mas quer ir além, perdoar e mostrar compaixão. O perdão e a compaixão são certamente os maiores valores e a vingança e a retaliação fazem parte da natureza humana. O Alcorão não pretende ignorar a situação, mas também não a toma como definitiva, encorajando a ir mais além e estabelecer valores mais elevados.
É verdade que houve um uso abundante da violência na história muçulmana, mas isso é porque esses muçulmanos descuraram os ideais do Alcorão nas suas vidas. Isso acontece com os seguidores de todas as religiões. Todos nós exultamos os ideais das nossas religiões ou citamo-los para provarmos a sua superioridade, mas muitas vezes não os seguimos. Os cristãos também falam do amor e da compaixão, mas a sua história também está cheia de violência. Mas o problema é que nós erroneamente comparamos a história de uma religião com os ideais de outra religião.
Se compararmos os ensinamentos do Islão com os do Cristianismo, ambos relevam o perdão e a compaixão, mas se compararmos a história do Islão com os ensinamentos do Cristianismo, encontramos a violência no Islão, o amor e a compaixão no Cristianismo, mas isso não é justo nem é uma comparação objectiva. Isso é, todavia, o que nós fazemos e muitas vezes resultam numa conclusão errada. É necessário comparar os ensinamentos com os ensina-mentos e a história com a história.
O Alcorão, de facto, insiste repetidamente em quatro valores fundamentais: justiça (‘adl), benevolência (ihsan), compaixão (rahmah) e sabedoria (hikmah) e estes são também os atributos de Deus. Assim, um bom muçulmano deve ser justo, benevolente (para com os outros), compassivo e sábio. Se não praticar estes valores não pode ser considerado um bom muçulmano. Esses valores devem ser estabelecidos e devem estar em luta constantemente para se colocarem em prática esses valores. Essa é a Jihád real. O Profeta Muhammad (p.e.c.e.) disse que a Jihád real é falar a verdade na cara de um tirano e que a luta com a espada na batalha é a “Jihád pequena” e controlar os desejos é “Jihád grande".
Além disso, é preciso ter em mente que, em qualquer tradição religiosa não existe uma tendência única, mas existem várias tendências e não se devem citar exemplos de uma determinada tendência e generalizá-la. O que fa-zem os meios de comunicação é precisamente citar exem-plos de alguns extremistas entre os muçulmanos e, em se-guida, generalizá-los a todos os muçulmanos. É o método mais injusto e não tem nada de científico. É verdade que alguns muçulmanos usam a violência e justificam-na em nome da Jihád, mas é errado dizer que todos os muçul-manos concordam com tal posição insustentável. A maioria deles opõe-se ao uso indiscriminado de violência dessa natureza, mas a imprensa quase não ouve as suas vozes, porque isso não faz notícias sensacionalistas.
Existem tendências pacíficas no Islão, nomeadamente representadas pelo Islão Sufita, que é seguido por uma grande maioria dos muçulmanos. A doutrina básica do Islão é o “sulh-I-kul”, isto é a paz seja total e com todos. Não há nenhum lugar para a violência e a intolerância no Islão Sufita. A paz, a tolerância e o respeito por todas as fés é das doutrinas mais básicas entre os Sufitas. Uma das escolas Sufitas acredita no que é chamado de “al-Wahdat Wujud” (isto é, a unidade do ser), que implica que todos nós somos uma manifestação de um ser e assim todas as distinções de raça e credo se tornam irrelevantes. Ibn al-Arabi de Espanha foi o fundador desta doutrina. O amor é um aspecto muito central para esta escola do Sufismo. A maioria dos muçulmanos em todo o mundo segue o Islão Sufita e não o Islão Wahabita que é purista e tende a ser intolerante.
Infelizmente, a imprensa ocidental cita muitas vezes o exemplo do Islão Wahabita da Arábia Saudita e mostra que o Islão é intolerante. Na Arábia Saudita a realidade também não é estática. Ela está a mudar nos tempos actuais. Os muçulmanos, assim como a família real, perceberam as consequências de uma abordagem sectária e intolerante e estão a provocar mudanças e a trabalhar para a paz e a atacar o terrorismo. Deve-se entender que o mundo islâ-mico deixou de ser estático. Está em permanente mutação e a tentar ajustar-se às novas realidades, embora o seu ritmo possa não ser o mais satisfatório para alguns. As pessoas levam tempo para se ajustar em matéria de religião e tradição. O processo de mudança social é muito complexo e requer muita paciência.
E, ao mesmo tempo, outro mito também muito desen-volvido é o de terrorismo. Fala-se de terrorismo islâmico e geralmente não se fala de terrorismo cristão ou terrorismo judaico, que também existem. É certo que hoje as organizações terroristas mais perigosas são “islâmicas”, mas o terrorismo não é um requisito necessário ao Islão, pelo contrário, é uma patologia, porque a única justificação da violência dada pelo Alcorão é a legítima defesa.
Depois há o mito de o Islão ser uma religião machista, que tem a mulher submetida, quando temos de ter em conta que o Islão, no século VII, operou uma enorme revolução, porque até então a mulher carecia de reconhecimento jurídico e a partir desse momento obteve-o.
E se formos ver, actualmente, no séc. XXI, «mais de metade das mulheres europeias têm sofrido de violência sexual. Uma Informação da Agência dos Direitos Fun-damentais da EU, a maior realizada até agora, destaca que 62 milhões de europeias têm sido vítimas de violência machista. Uma em cada três mulheres sofreu agressões físicas ou sexuais, mas só 34% dessas vítimas denunciam os factos mais graves. Cerca de 12% foram vítimas de agressões sexuais na infância e uns 43% sofreram violên-cia psicológica por parte de algum casal. Os dados são mais altos nos países nórdicos e mais baixos em Espanha, precisamente por escassa consciência social do problema» (Ver esta notícia no site do eldiaro.es, cujo link é: http://www.eldiario.es/sociedad/millones-europeas-sufrido-violencia-machista_0_235177241.html).
Outro mito prende-se com a contraposição entre Islão e democracia. É uma afirmação relativamente gratuita porque no início, um dos momentos mais impor-tantes da constituição do estado muçulmano na cidade de Medina foi a Constituição de Muhammad (p.e.c.e.), que integrava diferentes culturas, tradições religiosas distintas, diferentes tribos, com uma participação muito activa de todos os membros. Hoje pode-se dizer que no Islão existem modelos de estado e formas de governo ditatoriais, mas também democráticas, como na Indonésia, na Turquia ou Marrocos… com todas as limitações que possam ter estas democracias, da mesma forma que têm as democracias ocidentais. E também a ideia do Islão ser incompatível com os Direitos Humanos quando o Alcorão reconhece a digni-dade de todas as pessoas, a igualdade entre homens e mulheres…
Por fim, “que o Islão é uma religião antiquada, que estagnou na Idade Média, que luta contra o Ocidente”, sem valorizar e reconhecer que o Iluminismo foi produzido no Islão muitos séculos antes do que no Ocidente…
Assim, é fácil perceber-se que existem diversos mitos sobre o Islão e, na maior parte das vezes, esses mitos não são efectivamente fundamentados. Esses mitos devem ser analisados criticamente, antes de serem aceites. Não se deve, como muitas vezes acontece, citar os versículos do Alcorão sem se compreender o seu contexto histórico. Esses mitos criam obstáculos desnecessários à promoção da coexistência pacífica, que é tão necessária no mundo moderno, que está a tornar-se cada vez mais diversificada e plural, graças aos meios de comunicação mais rápidos e à integração económica que está a ocorrer numa escala crescente, devido à globalização. Existe uma grande neces-sidade de se compreenderem as religiões do mundo, de modos mais objectivos e sinceros, para promover a paz no mundo. Houve uma altura em que as rivalidades religiosas eram muito elevadas. Mas agora chegou a hora de esque-cer essas rivalidades e promover a coexistência pacífica.
No entanto, a rivalidade pode ou não ser religiosa, pois existem poderosos interesses políticos que utilizam a religião e as hostilidades religiosas para os seus próprios fins. Os EUA, sob a liderança de Bush, escolheram pros-seguir deliberadamente uma política de confronto com o Islão e construíram um carácter anti Islão, através dos meios de comunicação. Huntington também escreveu um livro intitulado “Choque de Civilizações” para servir a agenda política dos EUA, após o colapso do regime comunista na Rússia.
Temos de ser cuidadosos com tais desenvolvimentos e com o mau uso político da religião. Nesse aspecto, é de saudar a Aliança de Civilizações promovida pela Espanha, pois é uma iniciativa extraordinária e absolutamente neces-sária como um contrapeso para a estratégia do choque de civilizações concebida por Huntington, e que foi o livro de cabeceira e o mapa de Bush durante os oito anos do seu mandato.
Temos de fazer tudo o que for possível para criarmos uma boa compreensão de todas as religiões, para que nesta sociedade pluralista todos possamos viver em paz e harmonia.■
— «...Hoje, o Islão e o Cristianismo representam as maiores religiões na África, sendo o Islão, de facto, a maior religião no Continente...». — Nelson Mandela – 1918 /2013.
Quem não pretender continuar a receber estas reflexões, por favor dê essa indicação e retirarei o respectivo endereço desta lista. Obrigado, boas leituras. — M. Yiossuf Adamgy - 28/03/201