Nesta Semana de Paixão, muitos católicos recordarão que a Igreja proíbe comer carne na Quarta e na Sexta-feira Santas, dias nos quais, além disso, aconselha o jejum. É do conhecimento comum que judeus e muçulmanos crentes não comem carne de por-co e que os segundos têm proibido qualquer bebi-da alcoólica. O facto é que, desde há tempos, a religião não só procurou alimentar a alma, mas também o corpo dos fiéis.
Quase todas as religiões tutelaram menus proibidos ao longo da sua história, como lembra o doutor Ángel Rodríguez Cabezas, que estudou o carácter simbólico-religioso dos alimentos. «Todas as religiões estabeleceram restrições, às vezes com normas muito estritas com a comunidade de fiéis», expl-ca. Assim, o que é lícito ou ilícito comer converteu-se em cada religião em regras inquebrantáveis para atingir a pureza espiritual. «Hoje fizeram-se lícitas para vós todas as coisas boas da vida. E é para vós lícita a comida dos que receberam a revelação na-tes», diz uma passagem do Alcorão.
São as três religiões monoteístas nascidas na bacia mediterrânica (judia, cristã e muçulmana) as que mais influíram na alimentação dos seus fiéis. Mas não as únicas. Ángel Rodríguez Cabezas recorda como os ascetas se abstinham de comer cebolas para não «serem assaltados por uma inoportuna alucinação luxuriosa».
Alimentação e luxúria: A sexualidade e a gastro-nomia são as actividades mais relacionadas com os cinco sentidos corporais e, como demarca Rodríguez Cabezas, as religiões sempre se ocuparam das ape-tências sexuais, «pelo que não é estranho que todas as religiões tenham pretendido regular o fenómeno da alimentação». «A carne é um alimento maldito e incita ao desenfreamento sexual» (Concílio de Selêucia-Te-lifonte nos primeiros tempos do cristianismo).
O pecado da carne e a carne como alimento sem-pre foram considerados pecado pelas três religiões. «Pouca carne e de maneira mesurada», dizia o Pro-feta Muhammad (s.a.w.). É um dos aspectos que apa-rentemente une as ditas confissões, não tanto na re-alidade histórica.
CATÓLICOS - Abstinência e jejum na Quaresma
Hábitos mudados: A proibição nas religiões semi-tas da carne de porco converteu-a no brasão alimen-tar dos cristãos após a Reconquista e a expulsão de mouriscos e judeus. «Exibir um pedaço de presunto ou de toucinho velho no surrão era o melhor salvo-conduto para viajar pelas Espanhas», escreveu Cervantes. Ou, como diz o ditado popular, também referido por Rodríguez Cabezas: «Dos judeus fizeram mais cristãos o toucinho e o presunto do que a Santa Inquisição». Muitos convertidos foram para a fogueira por rejeitar comer porco.
Quatro séculos depois, as três culturas voltam a conviver em solo espanhol com a afluência de imi-grantes muçulmanos e judeus, em conjunto com a forma alimentar de cada crença. Algo mudou: Espa-nha é um Estado laico e a Constituição Espanhola defende a liberdade religiosa. Mas hoje, como ontem, as três confissões continuam a tentar reger sobre o menu dos seus fiéis, se bem que a sua capacidade de influência seja diferente. Na religião católica, a abstinência de carne e o jejum passou dos mais de 180 dias no ano para as quartas e terças-feiras da Quaresma e da Semana Santa. «No resto das sex-tas estamos agora isentos de não comer carne desde que se reze o terço ou se assista a uma missa», explica o deão da catedral de Málaga, Fran-cisco García Mota.
Relaxamento: O cumprimento da abstinência, toda-via, é muito menos do que há meio século atrás. Além do relaxamento religioso, os hábitos alimentares dos católicos espanhóis também mudaram. O próprio García Mota lembra que a carne era antes um ali-mento de ricos e o bacalhau, o seu substituto, agora até mais caro é. O porco (salvo o presunto de porco preto) converteu-se num alimento suspeito por causa do colesterol, enquanto o azeite, desprezado nos tempos de Cervantes (cozinhavam com banha de porco), está em alta. Na verdade, a Igreja recomenda que nos dias penitenciais «não só não se coma carne, mas também que se coma mais frugalmente e se dê esmola aos pobres», indica García Mota. Uma filosofia que se relaciona com as tradições 'halal' e 'kosher' de muçulmanos e judeus.
O que é 'halal' e o que é 'kosher' hoje em dia? Temos de recordar que a lista de alimentos 'impuros' para judeus e muçulmanos inclui muitos mais do que a carne de porco e até a carne permitida deve reger-se por normas de manipulação especiais. Na religião muçulmana quer os alimentos 'puros', quer o método da manufactura, recebe o nome de 'halal', que em árabe significa 'o permitido’. Assim, na religião judaica conhecem-se pelo nome de 'kosher', com o mesmo significado em hebreu.
'Halal' e 'kosher' são hoje algo mais: uma marca que garante aos crentes de ambas as confissões que o que consumem é adequado na sua religião e é também um modo de vida que se relaciona com a dieta mediterrânica. Talvez por isso, a sua preva-lência é maior e gerou no mundo uma indústria e um comércio de produtos 'halal' e 'kosher' de grande magnitude. Espanha, alheia a isso durante anos, vê também como se diversificam a indústria e os co-mércios pela procura crescente da população imi-grante, sobretudo na última década. Em que medida? Vamos por religiões.
MUÇULMANOS – Muito mais do que não comer porco
A marca 'halal': Espanha conta já com um pouco mais de um milhão e meio de muçulmanos. «A maio-ria, em diferentes graus, prefere consumir produtos 'halal'», segundo refere Isabel Romero, directora ge-ral do Instituto Halal em Espanha, com sede em Córdoba. É conhecida a exigência de que os animais aptos (todos menos o porco, as aves com garras, os carnívoros ou necrófagos e os achados mortos) devem ser sacrificados em nome de Allah e em direcção a Meca, mas há mais aspectos que pro-vocam desconfiança no consumidor muçulmano. Ro-mero dá um exemplo simples: uma goma contém gelatina de porco.
Os produtos com aditivos, álcool ou conservantes contrários à norma muçulmana são difíceis de detec-tar. Por isso surge em 1998 a ideia de constituir um organismo que, de acordo com a legislação espanho-la sobre saúde e alimentação, certifique quando um produto é 'halal'. O Instituto Halal é o primeiro e o único autorizado pelas instituições (reguladoras da agricultura), por enquanto, com uma marca de garan-tia 'halal' em Espanha, se bem que também existam autoridades religiosas das mesquitas que costumam certificar a carne 'halal' de alguns matadouros.
Nasce na Andaluzia, mas a marca já se interna-cionalizou e assinou acordos com comunidades islâ-micas de outros países, segundo explica Romero. E acrescenta que desde 2003 já têm o selo 'halal' mais de 300 produtos, desde leite, queijo, conservas ou vinagres até embalagens, porque alguns podem estar contaminados com elementos 'haram' (proibi-dos, contrários à lei islâmica). Isto foi possível através de contratos com as diferentes indústrias alimen-tares. Já há cerca de 90 em Espanha que diver-sificam as suas linhas de elaboração para produtos 'halal'. Entre elas, a conhecida conserveira Isabel, ou indústrias leiteiras, como a Central Lechera Asturiana ou a Puleva.
Isabel Romero explica que a marca conta com um regulamento e com peritos que observam o processo de elaboração. «Podemos aparecer em qualquer momento, já que há estabelecido um calendário», diz Romero. A indústria da carne 'halal' é a que maior crescimento experimentou em Espanha: supõe já 4% do total da produção.
JUDEUS – Indústria vigiada pelo rabino
O estilo 'kosher': «Que alimentos devem ser considerados puros e impuros? Não misturem o leite com a carne», diz a Bíblia. A população judaica em Espanha apenas alcança as 20.000 pessoas, radi-cadas principalmente em Barcelona, Madrid e Mála-ga. Não há um organismo próprio que certifique a qualidade dos produtos 'kosher' em Espanha. A maioria é importada de Israel e o resto é garantido por um rabino, que deve contar com a autorização dos respectivos organismos reguladores da agricultu-ra, explica Samuel Anidjar, secretário da Cultura da Comunidade Israelita de Málaga.
Não se pode fumar: É o rabino que vigia o sacrifício dos animais e que nele se cumpra as normas 'kosher' (entre elas, um sangramento rápido e completo do animal para que sofra o menos possível). Iguais ao sacrifício ‘halal’, os rabinos obrigam o matadouro a parar a linha de produção habitual e limpar toda a maquinaria. Não se pode fumar nem comer enquanto dura o processo.
Anidjar explica que até há pouco tempo era difícil encontrar produtos 'kosher', mas que cada vez são mais frequentes nos supermercados. Quanto à prefe-rência da comunidade judaica, indica que, «se há possibilidade de comprar algo 'kosher', prefere-se», ainda apesar de advertir de que «o paladar dos ali-mentos não é diferente dos outros; existe apenas a garantia de que a elaboração se fez com a nossa lei e de que não leva nenhum antioxidante com ingre-dientes proibidos».
Da mesma maneira se pronuncia Leon Bitan, pro-prietário do único restaurante 'kosher' da Andaluzia, situado em Torremolinos, onde serve paelha (sem lulas nem gambas, proibidas pela lei judaica) e biqueirões fritos. Tanto Anidjar como Leon Bitam admitem que os produtos 'kosher' são um pouco mais caros. «Um frango de dois quilos pode custar doze euros», indica Bitan.
Não há números exactos do que a marca 'kosher' está a gerar na indústria alimentar em Espanha, mas sim exemplos significativos da importância que está a adquirir. «Já há muitas marcas em Espanha com o selo 'kosher'», explica Leon Bitan, indicando o exem-plo da empresa Bravo, de Alhaurín de la Torre, que elabora azeitonas 'kosher'.
Este aumento dos produtos 'kosher' não se deve tanto à procura da população judia em Espanha, mas à de Israel. Desde há alguns anos, delegações de rabinos israelitas vêm supervisionar produções de azeite e vinho espanhóis. No caso da Andaluzia, assinaram acordos com os vinhos da González Byass e com o azeite de Ventas de Huelma (Granada), cuja cooperativa exportará para o país hebreu 250.000 litros de azeite este ano.
Um negócio que cresce: Cada vez mais, o comer-cio e a indústria da alimentação em Espanha não querem perder a ocasião de diversificar o negócio gerado pelas crenças religiosas. Hoje quase todas as grandes cadeias de alimentação oferecem produtos para muçulmanos e kosher para judeus nas pratel-eiras.
A política de algumas companhias até incluiu sec-ções próprias. É o caso da Hipercor, em Marbella, há dez anos (desde a abertura) com estantes específicas de produtos 'kosher' e 'halal'. «10% das vendas deste hipermercado são de produtos kosher», explica o chefe de sala deste estabelecimento, Antonio Moril-las.
A venda de 'halal' é menor pela concorrência das lojinhas especializadas em produtos muçulmanos, cada vez mais numerosos nas cidades, sobretudo os talhos 'halal'.
HALAL
O que é 'halal'? Em árabe, 'halal' compreende um sentido amplo e refere-se a tudo o que é permitido E, portanto, é benéfico e saudável para o ser humano, propicia uma melhora da qualidade de vida e evita riscos para a saúde. (Junta Islâmica).
O que é 'haram'? A tradução pode ser: proibido, desautorizado, mau, não-ético ou abusivo. (Junta Islâ-mica de Espanha)..
Alimentos 'haram'
Carnes: A carne do animal achado morto. O sangue. A carne de porco e javali e os seus deriva-dos. Os animais carnívoros e necrófagos. As aves com garras. Aqueles animais sobre os quais não se invocou o nome de Allah no momento do sacrifício.
Álcool: O álcool, as bebidas alcoólicas, as subs-tâncias nocivas ou venenosas e as plantas ou bebi-das intoxicantes.
Derivados: Ingredientes, aditivos, aromas proce-dentes de animais. A gelatina de porco.
Modo de vida
Outros: A usura, as cláusulas e a especulação abusivas. As apostas no jogo e a pornografia.
KOSHER
O que é 'Kosher'? Significa ‘apto’ e representa quer a união das leis dietéticas que se encontram na Bíblia e no Talmude, quer a pretensão de uma atitude sensível perante essas leis.
O que é 'taref' ou 'trefa'? Os alimentos proibidos, não permitidos segundo a Bíblia e o Talmude.
Alimentos proibidos
Carnes: O animal que se ingere deve ter o casco fendido e o estômago ruminante e não se deve ali-mentar de outros animais. São proibidos os roedores, porcos, cavalos, primatas, bestas e aves necrófagas e répteis. Também a ingestão de carne de um animal que morreu de velhice ou doença ou vítima de bestas necrófagas. Proíbe-se a ingestão de carne arrancada de um ser vivo. Proíbe-se beber sangue. O judaísmo considera o sangue o símbolo da vida.
Peixes: Proibido o marisco. Os peixes que podem ser consumidos são somente aqueles que possuem escamas e barbatanas.
Mistura: Não se deve misturar carne com leite. Esta regra infere-se do versículo: «Não cozinharás o cabrito no leite da sua mãe». As verduras, hortaliças e frutas podem comer-se tanto com carne como com leite.
M. Yiossuf Adamgy
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