Prezados Irmãos,
Assalamu Alaikum:
O “califado islâmico” é promovido pelos seus advogados, alegando que era um sistema ideal de governo islâmico no passado, que pode ser igualmente adequado e bem sucedido para o presente e futuro. O fato é que esta forma de governo é completamente inadequada para uso, sem falar que é impossível de implementar. Mas a história do califado islâmico também mostra que este estava longe de ser a imagem que é dada não só pelos seus apoiantes de hoje, mas também nas mentes de outros muçulmanos que não estudaram a história cuidadosamente.
O califado islâmico é um dos conceitos que sofreu do que eu chamo a abordagem “puritana” para entender e apresentar a história Islâmica. Quando usado com qualquer aspecto desta história, esta abordagem infalivelmente produz uma narrativa que é extraordinariamente arrumada e despreocupada mas, ao mesmo tempo, largamente contra a história. Isto aplica-se a coisas como a lei Islâmica, os ahadith do Profeta (p.e.c.e.), a história política do Islão, e por aí fora. O califado é outra vítima de tal perspectiva ingénua e pouco crítica da história do Islão. A abordagem puritana é o resultado de confundir Islão e Muçulmanos. O califado islâmico é invenção de muçulmanos e não um conceito islâmico genuíno.
O termo “califa” vem da palavra árabe “khalīfa” que significa “sucessor,” em referência a suceder ao Profeta Muhammad (p.e.c.e.) enquanto líder dos Muçulmanos. Este conceito não existe no Alcorão, apesar do termo “khalīfa” ser usado diferencialmente para se referir a qualquer humano que represente Deus na terra. Os dois elementos principais de um Califado Islâmico são uma liderança política que governe todos os Muçulmanos ou pelo menos um número substancial deles e a aplicação da lei islâmica através dessa liderança. Vou focar-me na questão da liderança dos Muçulmanos, tendo em conta a sua história para projectar o seu futuro.
Os Muçulmanos Sunitas, al-Khulafā’ al-Rāshidūn ou os “Califas Justos” que lideraram o estado Muçulmano depois da morte do Profeta (p.e.c.e.) em 11 da Hégira (632 Era Cristã), foram os primeiros califas. Estes foram Abu Bakr (11-13 H), ʿUmar bin al-Khaṭṭāb (13-23 H), ʿUthmān bin ʿAffān (23-35 H), e ʿAlī bin Abī Ṭālib (35-40 H). Os muçulmanos xiitas, no entanto, acreditam que ʿAlī devia ter sucedido o Profeta (p.e.c.e.) e que os primeiros três não foram califas legítimos. Argumentam que o Profeta (p.e.c.e.) nomeou ʿAlī como seu sucessor, e que a Reunião dos Companheiros do Profeta que teve lugar em Saqīfat Banī Sāʿida e que apontou Abū Bakr foi deliberadamente marcada, enquanto ʿAlī estava a preparar o enterro do Profeta (p.e.c.e.). Os Sunitas, pelo seu lado, argumentam que ʿAlī deu a sua bênção às nomeações dos três primeiros califas. Vários estudiosos e grupos acederam diferenciadamente e contrastaram argumentos e relatos históricos, daí as divergências sobre o que realmente aconteceu.
Independentemente da visão que cada um tenha sobre a legitimidade destes três califas, ninguém pode argumentar contra a existência de mais do que uma versão da história. Do mesmo modo, ninguém pode contestar o fato de estas divergências serem impossíveis de resolver de uma forma conclusiva, devido à falta de evidências indiscutíveis. Mas, deixando estas questões de lado, há fatos concordantes, e estes não são menos importantes.
O primeiro é que três dos quatro primeiros califas foram mortos. De fato, Abū Bakr governou apenas dois anos, então, é pertinente especular que, se ele tivesse governado mais tempo também teria sido morto. Estes assassinatos, certamente não foram sinal de estabilidade e consenso. Também indicam que os primeiros califas não estavam rodeados da proteção que os califas, mais tarde, tiveram.
As políticas e as nomeações de ʿUthmān causaram corrupção administrativa e favoritismo, provocando a fúria pública. Então, o segundo fato significativo é que na altura ʿAlī tomou posse do Califado depois do assassinato de ʿUthmān, e a situação política do estado Muçulmano piorou, significativamente, ao ponto de se tornar ingovernável pacificamente. Enquanto os três primeiros califas expandiram o estado islâmico através de conquistas, ʿAlī foi forçado a entrar em guerras civis.
No seu Segundo ano (36 H), ʿAlī teve de derrotar um exército comandado pelos Companheiros Ṭal-ḥa bin al-Zubair e al-Zubair bin al-ʿAwwām, ambos mortos na batalha. O nome da batalha, “al-Jamal” (O Camelo), indica por si só a gravidade da instabilidade política. O nome vem do fato de uma das esposas do Profeta (p.e.c.e.), ʿᾹ’isha, ladeada por Ṭal-ḥa e al-Zubair, ter caminhado no seu exército às costas de um camelo.
Mas a Guerra que verdadeiramente mudou a direção da história do Islão, surgiu três anos mais tarde. ʿAlī tentou substituir Muʿāwiya bin Abī Sufiān que fora indicado por ʿUmar como governador da Jordânia e Damasco, e a quem ʿUthmān estendeu, mais tarde, o seu poder para incluir a Síria. Muʿāwiya usou o pretexto, de que ʿAlī não levou os assassinos de ʿUthmān à justiça, para rejeitar o califado de ʿAlī e a sua decisão de o demitir da sua função. Isto fez com que os dois se defrontassem na Batalha de Nahrawān em 39 H. O fim inconclusivo desta batalha, mais tarde, enfraqueceu o califado de ʿAlī. Sem surpresa, o quarto califa foi assassinado um ano depois. Após a morte de 'Alī, o seu filho e neto do Profeta al-Imam al-Hassan foi escolhido para sucedê-lo como califa, mas em 6 meses foi forçado a demitir-se e entregar o poder a Mu'awiya. Depois de frustrada a tentativa de 'Alī para reformar o Estado islâmico e ter conseguido tomar o poder, Mu'awiya passou a introduzir a monarquia hereditária para os muçulmanos, estabelecendo o primeiro califado dinástico, o Umayyad (Omíadas) (41-132 H).
Esta é uma extremamente breve descrição da história mais antiga do califado islâmico, mas serve para mostrar a quão desarrumada a história é.
Mais detalhes do que aconteceu só podem tornar a imagem ainda mais confusa. Os califas que sucederam, com raras excepções, não foram muito melhores do que Mu'awiya. O último líder político a levar o título de califa foi Mehmed VI, o último sultão otomano. Em Novembro de 1922, a Grande Assembleia Nacional Turca, sob a liderança de Mustafa Kemal Atatürk, aboliu o sultanato e enviou o último sultão para o exílio. O primo do último, Abdül-mecid Efendi, foi nomeado califa, que é um líder religioso, mas sem poder político. Em Março de 1924, este título, agora totalmente sem sentido, também foi finalmente abolido.
Quando o Profeta Muhammad (p.e.c.e.) estava vivo, ele era o líder incontestado e único, tanto espiritual e político, de todos os muçulmanos. Isso é natural, é claro, uma vez que a própria definição de "muçulmano" implica a crença na origem divina da missão do Profeta e obediência a ele como indicado, repetidamente, no Alcorão, aos muçulmanos que "obedeçam a Deus e ao Mensageiro" (por exemplo, 3:32). Qualquer rejeição da liderança espiritual e política do Profeta (p.e.c.e.) não teria sido vista como uma quebra entre os muçulmanos, porque teria resultado na perda rejeitadora da sua identidade islâmica, ou seja, tornar-se-ia não-muçulmano. A própria definição de muçulmano foi derivada de aceitar e seguir o Profeta (p.e.c.e.).
Mas o mesmo não pode ser dito sobre os sucessores do Profeta. Se alguém rejeitasse a nomeação de, digamos, Abu Bakr (r.a.), como califa, em seguida, não seria automaticamente afastado da sua identidade islâmica ou excluído da comunidade muçulmana. Uma pessoa pode acreditar que Abu Bakr era a pessoa errada para liderar os muçulmanos e ainda assim ser um muçulmano. Obviamente, se alguém acreditasse que o Profeta (p.e.c.e.) tinha escolhido o seu sucessor, mas rejeitasse a sua decisão, então, teria sido um ato extremamente grave de desobediência, mas nenhum dos que apoiava ou contestava a nomeação de qualquer dos primeiros califas disse que agiam contra a decisão do Profeta (p.e.-c.e.). Todos argumentaram que estavam a seguir o que o Profeta (p.e.c.e.) queria.
Os xiitas argumentariam que ‘Alī (r.a.) foi, a este respeito, mais como o Profeta do que os outros califas, porque o Profeta (p.e.c.e.) escolheu-o explicitamente a ele para sucedê-lo, política e espiritualmente. No entanto, o fato da maioria dos muçulmanos não ter e não partilhar esta crença, significa que o caso de 'Alī não é o mesmo que o do Profeta. A liderança do Profeta (p.e.c.e.) era indiscutível, e isso é um ponto crítico na discussão atual.
Para o bem do argumento, vamos supor que os três primeiros califas foram aceites por unanimidade por todos os muçulmanos. Mesmo se isso fosse verdade, essa unanimidade terminou com a morte de 'Uthmān (r.a.). 'Alī (r.a.) foi a escolha da maioria, mas também enfrentou oposição séria. Esta oposição cresceu assim como alguns dos seus seguidores também se voltaram contra ele, porque ele aceitou uma trégua com Mu'awiya. Não se encontrou nenhuma vitória, nenhuma situação ganha; uma tarefa impossível. Após 'Alī, os califas muçulmanos não ganharam poder através do consenso da maioria, como os primeiros califas, mas impondo-se sobre os seus súditos muçulmanos.
Mu'awiya (41-60 H) não era mais popular do que 'Alī ou al-Hassan, nem lhe foi dada a posição de chefe de Estado islâmico pelos muçulmanos. Ele simplesmente tomou o poder pela força, bem como astúcia, e sacrificou tudo para tomar o poder e tornar-se califa e, em seguida, passá-lo para seu filho Yazīd (60-64 H). Os Abássidas extravagantes não eram menos brutais ou mais consensualmente eleitos do que os governantes Omíadas, e os Sultões indulgentes Otomanos não eram menos ditatoriais e narcisistas, para citar apenas os principais impérios islâmicos.
Estes governantes poderiam ter governado a maioria dos muçulmanos e países muçulmanos, mas isso não é o principal elemento do conceito do califado islâmico, como aplicado aos primeiros califas. Nenhum destes governantes e poderosos califas o foram no mesmo sentido dos primeiros califas. Além disso, os seus motivos estavam longe de ser puramente islâmicos. É revelador que os sultões otomanos conseguiram conquistas que expandiram o seu império massivamente em todas as direções mas, ainda assim, nem um único deles fez a viagem a Meca para a peregrinação ou 'umra ou visitou o Santuário do Profeta (p.e.c.e.) em Medina. A sua vontade de juntar supostas relíquias do Profeta (p.e.c.e.), em Istambul, era mais sobre a promoção do sua capital do que resultado de amor pelo Profeta (p.e.c.e.) ou prestação de um serviço para os muçulmanos. Houve raras excepções, como eu disse, como o califa omíada ʿUmar bin ʿAbd al-ʿAzīz.
Tudo isto evidencia um facto simples: a partir da perspectiva sunita, os muçulmanos tiveram um califado por apenas 30 anos depois do Profeta (p.e.c.e.), e para os xiitas só existiu durante os cinco anos do governo de 'Alī. Os séculos posteriores de lideranças fortes, muitos dos quais governou a maioria dos muçulmanos, foram tempos de califado islâmico apenas de nome. É por isso que o alegado califado islâmico do passado é mais um mito do que uma realidade.
Mesmo quando a comunidade muçulmana ainda era pequena, ter um califa amplamente aceite era difícil. Nem mesmo 'Alī, cuja proximidade com o Profeta (p.e.c.e.) e piedade nunca foi questionável, não pôde unir os muçulmanos. Mu'awiya percebeu que para unir os muçulmanos ou a maioria deles, os governantes tinham que recorrer às mesmas tácticas de base que todos os reis e imperadores da época: usar o poder, tomar o poder, para justificar o poder. Pode-se argumentar que se Mu'awiya tivesse aceite o califado de 'Alī a história do califado islâmico teria sido diferente. Mas a questão é que esta história alternativa preferível não se concretizou ainda que tivesse como destaque uma figura como 'Alī.
Então, se isto é o que aconteceu naquela época, quais são as possibilidades de realização de um verdadeiro califado islâmico no mundo de hoje? Quem é que é um califa excepcionalmente talentoso e piedoso? Colocando esta questão de lado, mesmo um califa que governasse da Indonésia a Marrocos teria muitos milhões de muçulmanos que vivem em outros lugares e em diferentes sistemas políticos. E como é que poderia ter lugar uma qualquer unificação política entre os estados islâmicos ainda que fosse pela força? É por isso que um califado islâmico moderno nunca pode ser mais do que uma ilusão.
Pode-se argumentar que, independentemente de todas as suas falhas, o califado islâmico era melhor para os muçulmanos, do que viver sob as regras de não muçulmanos. Isto era verdade para a maioria, se não fosse para todos os tempos. Na verdade, esses califas muçulmanos muito corruptos foram muitas vezes preferidos, até mesmo por não muçulmanos, a outras regras. Os judeus tiveram uma vida muito melhor e estavam mais seguros sob o governo de califas muçulmanos do que governantes cristãos. Mas isso não significa que esses califas tivessem representado uma liderança islâmica adequada. Eles não eram governantes muçulmanos genuínos, com algumas falhas; eles eram ditadores corruptos que tinham emprestado do Islão alguns dos seus belos valores.
Mas aqui está o ponto crítico. Enquanto esse califado pode ter sido a melhor opção disponível na época, no entanto, certamente, não é uma opção hoje. Quero dizer, não só para os não muçulmanos, mas também para os muçulmanos. O califado islâmico é efetivamente um sistema de governo totalitário; por isso, por definição, é totalmente incompatível com a forma como as pessoas hoje querem viver e ser governadas. Qualquer sistema ditatorial, independentemente da sua base teológica, seria rejeitado e ressentir-se-ia pela esmagadora maioria dos muçulmanos. É por isso que qualquer grupo que busca estabelecer um califado islâmico, como a al-Qaeda e o Estado Islâmico (IS), só pode fazer isso forçando brutalmente as pessoas. Na verdade, a sua selvajaria excede até a brutalidade de outros ditadores contemporâneos, algo de que a maioria dos califas do passado não pode ser acusada. Os muçulmanos sabem que têm mais direitos humanos se viverem sob os governos não muçulmanos que sob uma versão moderna do califado islâmico terrível do passado. Porque a esmagadora maioria dos muçulmanos hoje se opõem a um califado islâmico, este projeto não tem hipóteses de sucesso. No entanto, como em qualquer guerra, pode ainda deixar para trás muitas pessoas mortas e causar sofrimento e destruição inimaginável. Para muitos, a imagem do Islão é parte do dano.
Aqueles que querem estabelecer um califado islâmico hoje e voltar à supostamente perdida glória, são culpados de, pelo menos, uma das seguintes opções, senão, maioritariamente, de todas elas:
- A ignorância da história islâmica;
- Promoção de uma visão incrível e irreal do califado islâmico;
- Falha em mostrar como esse sistema pode ser implementado;
- Tentativa de estabelecer um pequeno califado de curto prazo usando extrema brutalidade contra aque-les que eles querem governar.
Aqueles que usam a violência para conduzir o seu objectivo de um califado islâmico, como a al-Qaeda e IS, buscam o que os Omíadas, Abássidas, Fatimitas, Otomanos e outros governantes muçulmanos queriam. Do que eles estão atrás é exatamente o mesmo que os gregos, romanos, cristãos e outros reis e imperadores procuraram: poder e privilégios. A sua alegação de que querem estabelecer um califado islâmico para servir o Islão não é mais verdadeira do que a proclamação dos cruzados que travaram as suas guerras para promover e defender o cristianismo. Quando o poder e os privilégios são um motor principal, o fanatismo vem a calhar, porque o falso zelo pela religião pode ser usado para justificar a eliminação de um rival e inimigos, incluindo aqueles que partilham da mesma fé. Esta é a forma como os grupos islâmicos que buscam o califado justificam a perseguição e morte de xiitas, sufis, sunitas; eles não aprovam os muçulmanos não conformes, e muito menos os não muçulmanos. Tais grupos violentos e indivíduos são os novos cruzados; eles são em si mesmo os cruzados.
Obrigado. Wassalam.
M. Yiossuf Adamgy - 16/10/2014.
Enviado para Al Furqán por: Louay Fatoohi - Traduzido por: M. Yiossuf Adamgy