"Os meios de comunicação converteram-se em aliados dos extremistas muçulmanos"
O dramático desenvolvimento, dia a dia, de acontecimentos mundiais, serviram para reforçar a percepção, amplamente compartilhada, de que o Islão está, de alguma maneira, especialmente ligado com a violência terrorista.
Para poder discernir sobre a veracidade da afirmação que se faz comummente de que o Islão tem uma especial propensão para a violência necessitaríamos de analisar esta questão fazendo referência aos ensinamentos morais do Islão contidos na escritura sagrada do Islão, o Alcorão, e na conduta do Profeta Muhammad (p.e.-c.e.), assim como também ao atual contexto geopolítico mundial.
Seria o mais conveniente começar esta análise com uma simples formulação maniqueísta. Como já se disse, a violência terrorista nunca está longe da compreensão popular do Islão. Inclusivamente desde a perspectiva académica convencional que se considera que o projeto político dos Islamitas (ou melhor "fundamentalistas islâmicos", como pejorativamente são denominados na bibliografia) tem uma especial predileção pela violência como instrumento para realizar a mudança social.
Segundo esta visão, é a dimensão religiosa, o Islão, a fonte primária da violência terrorista contemporânea. No pólo oposto estariam os muçulmanos apologéticos que negam profundamente que o Islão tenha alguma relação com a violência terrorista. Segundo eles, toda a violência na qual se veem envolvidos muçulmanos não é senão uma vil distorção e uma corrupção dos autênticos e nobres ensinamentos do Islão.
Como ocorre sempre nestes casos, há elementos de verdade em ambas as formulações. A primeira delas subestima em grande medida as condições sociopolíticas e económicas sob as quais o Islão se vê implicado na violência, e a segunda ignora o facto de que prati-camente a totalidade dos muçulmanos aceita que o Islão não é uma tradição pacifista e que o Islão permite e legítima o uso da violência sob certas condições, cuja definição varia de um jurisconsulto muçulmano para outro. Aqui radica grande parte do problema.
● Sob que condições admite o Islão o uso da violência?
Este crítico dilema não é exclusivo do Islão. Todas as grandes tradições/religiões sentem grande preocupação por saber quais são as características de uma "guerra justa", preocupação que se acentua em tempos de mortífero conflito.
O ponto central que devemos ter em conta é que dita justificação religiosa da violência não se produz num vazio sócio histórico. O ex-vice-presidente do Conselho de Inteligência Nacional da C.I.A., Graham Fuller, num recente artigo na revista "Foreign Affairs", ilustra poderosamente este extremo ao dizer: "Se uma sociedade e a sua política são desgraçadas e violentas, o seu modo de expressão religiosa provavelmente também o será." (Fuller: 2002)
● A violência e a vida de Muhammad (p.e.c.e.)
Para entender corretamente as normas morais do Islão acerca da violência contidas na escritura sagrada, o Alcorão, e na conduta do Profeta Muhammad (p.e.c.e.), é necessário analisar o meio histórico em que se desenvolveram.
Quando o Profeta Muhammad (p.e.c.e.) [570-632 d.C.] trouxe o Alcorão aos árabes no começo do século VII, a Arábia pré-islâmica era socialmente opressiva e encontrava-se envolvida num círculo vicioso de violência. A mensagem igualitária que Muhammad (p.e.c.e.) trazia consigo converteu-se rapidamente numa ameaça para a elite de Meca, que se opôs aos seus ensinamentos com grande veemência. Muhammad (p.e.c.e.) viu-se obrigado a mandar uma parte dos seus primeiros seguidores refugiar-se em Abissínia, e ele próprio, mais tarde, teve que emigrar para Medina em 622 d.C.
Durante o período de Meca os primeiros muçulmanos fizeram frente à angústia, aos insultos e às ameaças de morte com uma resistência passiva. Unicamente aos treze anos da sua missão profética foi permitido a Muhammad (p.e.c.e.) e aos primeiros muçulmanos a re-sistência armada, e sob umas condições muito restritas:
"Aqueles que lutarem por ter sido vítimas de alguma injustiça é-lhes permitido lutar, e, na verdade, Allah tem poder para ajudá-los. Os que foram expulsos, injustamente, dos seus lares, só porque disseram: Nosso Senhor é Deus. E se Deus não tivesse refreado os instintos malignos de uns em relação aos outros, teriam sido destruídas ermidas, sinagogas, oratórios e mesquitas, onde o nome de Deus é frequentemente celebrado …" (Alcorão, 22, 39-40).
É interessante ressaltar que os versículos do Alcorão acima citados dão precedência à proteção de ermidas e sinagogas sobre a das mesquitas, para sublinhar a sua inviolabilidade e o dever do muçulmano de protegê-las de todo o ataque ou abuso, assim como o dever do muçulmano de proteger a liberdade de crença. O propósito da violência, segundo estes versículos, é a defesa, não só do Islão, mas da liberdade religiosa em geral.
Na década seguinte (622-632 d.C.), Muhammad (p.e.-c.e.) e os seus seguidores, cada vez mais numerosos, ver-se-iam envolvidos numa série de batalhas contra a agressão militar por parte dos seus adversários, incluindo as críticas batalhas de Badr, Uhud e Khandaq. Como o Alcorão também foi revelado em tempos de mortal conflito, contém diversas disposições sobre a ética da guerra (5: 49; 7: 61; 11: 118-9; 49: 9; 49: 13). O Alcorão deixa bem claro, no entanto, que os conflitos só podem ser evitados mediante a justiça, que transcende os interesses pessoais e sectários (4: 13; 7: 29).
«Ó vós que credes! Sede firmes na justiça, como testemunhas de Deus, ainda que seja contra vós mesmos, contra os vossos pais ou parentes, e quer se trate de uma pessoa rica ou pobre; pois que a Deus incumbe protegê-los (a ambos). Não sigam, portanto, as vossas paixões, para não serdes injustos. E se alterardes (o testemunho) ou vos recusardes a testemunhar, sabei que, na verdade, Deus conhece de quanto fazeis». (4: 135).
A guerra justa é sempre má, mas às vezes há que lutar para evitar a perseguição que Meca infligiu aos muçulmanos (2: 191; 2: 217), ou para a defesa de valores que merecem ser preservados (4: 75; 22: 40). A guerra era um assunto desesperado na Arábia do século VII. Não se esperava que um chefe mostrasse debilidade ante o inimigo durante a batalha, e algumas disposições Alcorânicas parecem compartilhar este espírito (4: 90) No entanto, outros versículos incluem exortações à paz: «E se se retiram e não vos combatem e vos oferecem a paz… Allah não vos dá nenhum meio para ir contra eles».
O Alcorão cita a Tora, a escritura judaica, que permite às pessoas represálias mediante a lei de Talião, mas da mesma forma que os Evangelhos, o Alcorão sugere que é muito meritório renunciar à vingança num espírito de caridade (5: 45). As hostilidades hão de terminar tão brevemente quanto seja possível, e devem cessar no momento em que o inimigo peça a paz (2: 192-3).
Durante a sua estadia em Medina, Muhammad (p.e.c.e.) tentou resolver o conflito com os chefes de Meca e os seus aliados mediante um tratado assinado num lugar chamado al-Hudaibiyyah. O tratado chegou a ser conhecido como Sulh al-Hudaibiyyah. Sulh é um termo importante em Direito Islâmico (Shari’a). O propósito de sulh é terminar com os conflitos e as hostilidades entre adversários de modo a que possam relacionar-se em paz e amizade (49: 9). A palavra em si foi utilizada para se referir tanto ao processo de justiça restauradora e de pacificação como ao próprio resultado do processo. Apesar de Sulh al-Hudaibiyyah nunca ter chegado a conseguir a sua finalidade devido ao incumprimento das suas disposições por parte dos habitantes de Meca, permanece como um exemplo instrutivo de estratégia de intervenção em conflitos.
No ano 630 d.C., os muçulmanos obtiveram a sua vitória mais significativa ao conquistar a cidade de Meca, sem derramamento de sangue. Isto deu a Muhammad (p.e.c.e.) uma segunda oportunidade para estabelecer um genuíno processo de sulh. Num espírito de magnanimidade, perdoou os seus inimigos e estabeleceu um processo de reconciliação. Promulgou-se uma amnistia geral que pôs fim a todas as reivindica-ções de vingança das tribos. Três anos mais tarde, Muhammad (p.e.c.e.) morreu em Medina com a idade de 63 anos.
● O conceito islâmico de jihad e a sua relação com a violência
O termo Alcorânico mais associado com a violência é o de jihad. A palavra jihad muitas vezes é incorretamente traduzida como "guerra santa" e tida por tal e, em consequência, para muitos no Ocidente chegou a repre-sentar o Islão como uma religião de violência e terrorismo. A insistência dos académicos ocidentais em usar categorias de pensamento como "guerra santa" e "fundamentalismo", que estão enraizados nos paradigmas cristãos ocidentais, não ajuda a interpretar os movimentos que atualmente se dão no Islão. De fato obscurece ainda mais a realidade e é mais um obstáculo à hora de iniciar a crítica tarefa com que se enfrentam cristãos e muçulmanos, depois do 11 de Setembro, a de construir pontes de entendimento entre as duas comunidades.
Os acadêmicos muçulmanos sempre puseram objeções à estupidez que supõe confundir os termos "jihad" e "guerra santa". Mais recentemente, um jurisconsulto islâmico americano, Khalid Abou-el-Fadl, manifestou este contrassenso quando disse: "O conceito islâmico de jihad não deve ser confundido com o conceito medieval de ‘guerra santa’ uma vez que esta última expressão (al-harb al-muqaddasah, em árabe) jamais é utilizada nem no texto do Alcorão nem pelos teólogos muçulmanos. Na teologia islâmica a guerra pode ser justificada ou não, mas nunca é ‘santa’." (Boston Review 25/2/2002).
"Jihad" é um amplo conceito que designa um esforço de qualquer tipo para a consecução de um fim louvável, e que compreende a persuasão pacífica (16:125), a resistência passiva (13:22; 23:96; 41:34), assim como a luta armada contra a opressão e a injustiça (2:193; 4:75; 8:39).
Para além disso, a "jihad" não se dirige contra outras religiões. Numa afirmação que em árabe resulta determinante, o Alcorão diz: «Não há coerção em matéria de fé» (2: 256). Inclusivamente, a protecção da liberdade religiosa e de culto para os seguidores de outras religiões é uma obrigação sagrada para os muçulmanos.
Esta obrigação foi instituída simultaneamente à concessão da autorização para a luta armada ["jihad al-qital"] (22:39-40). Na tradição mística do Islão, o sufismo, a mais importante forma de jihad, a jihad pessoal, consiste em purificar a alma e refinar a própria maneira de ser. Esta é considerada a luta mais importante e urgente, e está baseada numa tradição profética (hadith). Enquanto voltavam de uma batalha, o Profeta (p.e.c.e.) disse aos seus companheiros: "Regressamos da pequena jihad (a luta física) à grande jihad (a auto-disciplina)".
Tradicionalmente, os sufistas entenderam esta forma maior de jihad como uma luta espiritual para submeter os impulsos primários e os baixos instintos da natureza humana. O célebre sufista do século XIII, Jalal ud-Dín Rumi, expôs esta noção de jihad ao escrever: “Os Profetas e os santos não iludem a luta espiritual. A primeira luta espiritual que empreendem é a aniquilação do ego e o abandono dos caprichos pessoais e os desejos sensuais”. Nisto consiste a "grande jihad".
● O que diz o Islão sobre o terrorismo?
O Islão, uma religião de misericórdia, não permite o terrorismo.
Deus diz no Alcorão: «Deus não vos proíbe de tratar bem e com justiça os que não tenham combatido a causa da vossa crença nem vos tenham expulsado dos vossos lares. E, na verdade, Deus ama os equitativos». (60:8)
O Profeta Muhammad (p.e.c.e.) costumava proibir os soldados de matar mulheres e crianças (Sahih Muslim, #1744, e Sahih Al-Bukhari, #3015) e ele os avisava: “...Não traiam, não sejam excessivos, não matem um recém-nascido” (Sahih Muslim, #1731, e Al-Tirmidhi, #1408). E ele também disse: “Quem quer que mate uma pessoa que fez um tratado com os muçulmanos não deve sentir a fragrância do Paraíso, embora a sua fragrância seja sentida por um período de quarenta anos” (Sahih Al-Bukhari, #3166, e Ibn Majah, #2686). O Profeta Muhammad (p.e.c.e.) também proibiu a punição com o fogo. (Abu-Dawud, #2675).
Numa ocasião qualificou o assassinato como o segundo dos pecados grandes [capitais] (Sahih Al-Bukhari, #6871, e Sahih Muslim, #88). E advertiu que, os primei-ros casos a serem ouvidos, entre as pessoas, no Dia do Juízo, serão os de derramamento de sangue. (Sahih Muslim, #1678, e Sahih Al-Bukhari, #6533).
Os muçulmanos também são encorajados a serem gentis com os animais e são proibidos de feri-los. Uma vez, o Profeta Muhammad (p.e.c.e.) disse: “Uma mulher foi punida porque aprisionou um gato até que ele morresse. Por causa disso, ela foi enviada ao Inferno. Para além de o ter encerrado não lhe deu de comer nem beber e não o deixou livre para que pudesse caçar”. (Sahih Muslim, #2422, e Sahih Al-Bukhari, #2365). Ele também disse que uma pessoa deu de beber a um cão muito sedento, e Deus perdoou-lhe os seus pecados por essa atitude. Perguntaram ao Profeta: “Ó Mensageiro de Deus! Nós somos recompensados pelo bom tratamento dispensado aos animais?” Ele disse: “Existe uma recom-pensa para a gentileza com qualquer animal ou criatura viva”.
Para além disto, Deus ordena aos muçulmanos que quando tomem a vida de um animal para alimentar-se dele, o façam de maneira que lhe cause o mínimo sofrimento possível. O Profeta Muhammad (p.e.c.e.) disse: “Quando degolarem um animal, façam-no da melhor maneira. Deverão afiar (antecipadamente) as vossas facas para reduzir o sofrimento do animal”. (Sa-hih Muslim, #1955, e Al-Tirmidhi, #1409).
À luz destes e outros textos islâmicos, o ato de incitar o terror nos corações de civis indefesos, a destruição desenfreada de prédios e propriedades, o bombardeio e mutilação de homens, mulheres e crianças inocentes são todos atos proibidos e detestáveis de acordo com o Islão. Os verdadeiros muçulmanos seguem uma religião de paz, misericórdia e perdão, e a vasta maioria não tem nada a ver com os eventos violentos que alguns associaram aos muçulmanos. Se um muçulmano cometer um acto de terrorismo, essa pessoa será culpada de violar as leis do Islão.
Conclusão: Para retornar à nossa questão central: como se explicam os muitos conflitos violentos do mundo atual onde se veem implicados o Islão e os muçulmanos? A minha resposta honesta é a seguinte: A ordem mundial que impera não é precisamente justa, por muita imaginação que se queira ter. O Islão põe grande ênfase na justiça social. Os extremistas têm uma influência desmedida no âmbito muçulmano. Os meios de comunicação converteram-se "inadvertidamente" em aliados dos extremistas muçulmanos.
A finalizar, apesar da imagem violenta do Islão gerada pelos meios de comunicação e da muito real violência que existe em algumas zonas do mundo islâmico, há que recordar que, certamente, a história do Islão não foi mais violenta que a de outras religiões.■
"O uso da religião para justificar o ódio e a violência para dar uma aparência de santidade que não tem, é um recurso popular dos grupos cujo objetivo não é, em caso algum, honrar a Fé.
Se assim fosse, apresentariam a sua conduta para a paz, não para a morte. Rancores pessoais, interesses culturais, estratos políticos e econômicos, estão no fundo dessas atrocidades que em nada representam os muçulmanos em geral, e não são expressão do papel que Deus nos deu na terra.
O confronto entre muçulmanos e cristãos não faz parte da nossa ética e devem ser rejeitados pelos verdadeiros crentes. O "ódio cego" não é islâmico, é um pecado mortal. A violência não é religiosa; é criminosa; é como se tivesse assassinado toda a Humanidade.".
Por: M. Yiossuf Mohamed Adamgy
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