Qual é a posição das mulheres no Alcorão e nos Aha-dith (pl. de Hadith)? É muito interessante comparar aqui-lo que é dito no Alcorão acerca das mulheres com aquilo que surge acerca delas na literatura de alguns Ahadith. E não me estou a referir aqui aos Ahadith de outras fontes, mas àquela que é conhecida como Sihah Sitta (i.e. as seis fontes mais autênticas dos Ahadith). Espero que os nossos Ulema reflictam sobre a diferença entre a forma como o Alcorão vê as mulheres e a perspectiva que alguns Ahadith têm delas. Muitas das angústias das mulheres muçulmanas terminarão, se nos guiarmos pelo Alcorão em vez de seguirmos estes Ahadith.
As mulheres perderam nos Ahadith aquilo que haviam conquistado no Alcorão. Actualmente, se o mundo pensa que o Islão trata as mulheres de forma extremamente injusta, tal deve-se ao facto de seguirmos esses Ahadith, em vez de nos guiarmos pelo Alcorão, no que respeita às mulheres. Na fase pré-islâmica, as mulheres ti-nham o mais baixo dos estatutos sociais e o Alcorão elevou-o consideravelmente, algo que o nosso Ule-ma nunca se cansou de referir. Mas no espaço de algumas décadas após a revelação do Alcorão, as mu-lheres voltaram a descer à sua condição pré-islâmica, no seio de uma sociedade ferozmente dominada pelos homens. E tal foi alcançado recorrendo aos Ahadith como fator de legitimação.
Aqueles que narraram os Ahadith nunca pararam um momento para pensar no quanto os mesmos contra-dizem o Alcorão, uma vez que eles serviam, de forma exímia, o seu propósito social. O Alcorão facultou ideais e valores, mas a sociedade foi incapaz de ascender a esse nível, tendo, pelo contrário, arrastado o Islão ao seu próprio nível, pelo que os Ahadith serviam melhor os seus interesses.
Quando o Islão estava confinado à península arábica, era diferente, mas a partir do momento em que se disse-minou por paragens longínquas, a zonas do Império Romano, ao Império Sassânida (Irão), à Ásia Central, etc., regiões muito díspares na sua cultura, valores religiosos e ética social, foi perfeitamente natural que o Islão se tenha adaptado às necessidades dessas sociedades. Todos os juristas (fuqaha') afirmam que até a Chari'ah integra bastante das adati árabes (leis consuetudinárias). Não era fácil evitar todos estes valores culturais e práticas consuetudinárias que existiam nas sociedades não-árabes quando os povos destas regiões se converteram ao Islão. O estatuto das mulheres nestas regiões não era muito diferente daquele que tinham na Árabia pré-islâmica; quando nos convertemos a uma religião que teve origem longe da nossa própria zina, não pomos automaticamente de parte os nossos valores culturais e ética social própria.
Da mesma forma, é sabido que o Islão se disseminou de forma abrangente, ampla e mais rapidamente do que a compilação das leis da Chari'ah nas diferentes escolas. Com efeito, surgiram várias escolas da Chari'ah (madahibi) nas diferentes zonas pelas quais o Islão se disseminou. Mesmo antes de os árabes terem conseguido apreender o significado pleno do Islão e ajustar as suas vidas a novos valores e ideais, ele já se tinha espalhado por várias zonas do mundo, até à China. A verdade é que o Islão se disseminou por estas regiões a uma velocidade alucinante.
É também interessante realçar que uma série de com-panheiros do Profeta (p.e.c.e.) se espalharam por várias regiões do mundo e, em muitos casos, estes companheiros casaram com mulheres locais, tendo adotado os valores culturais da região, mas, visto que continuavam a ser companheiros do Profeta (p.e.c.e.), eram igualmente fontes de conhecimento islâmico, e aqueles que se convertiam ao Islão seguiam-nos em busca de orientação. A partir desta altura, vários Ahadith foram narrados por estes companheiros, com base nas memó-rias que tinham e no seu entendimento do Islão. Assim sendo, a par da autenticidade dos Ahadith, a sociologia a elas associada torna-se igualmente importante.
Enquanto o Alcorão foi compilado durante a vida do Profeta (p.e.c.e.) e quando foram notadas algumas va-riações em relação à récita padrão (principalmente devido a dialetos tribais), o Califa Hazrat Osman (r.a.) teve a sabedoria de compilar a versão padrão e destruir todas as outras, tendo-se desta forma preservado o Alcorão das diferenças textuais. Todas as outras cópias do Alcorão foram concebidas com base nesta.
Os Ahadith, por outro lado, foram compilados dois a três séculos depois da morte do Profeta Sagrado (p.e.-c.e.) e sofreram muitas alterações, devido à passagem do tempo. Embora tenham existido vários narradores e apesar da sua honestidade e integridade, havia grande probabilidade de os textos serem modificados de narrador para narrador, uma vez que estes tinham, inclusivamente, diferentes interpretações e origens culturais. Infelizmente para os Ahadith, a honestidade e integridade dos seus narradores tornaram-se nos únicos critérios, em vez de se valorizar a conformidade com a perspectiva, valores e ideais do Alcorão.
Por outro lado, havia também aqueles que não hesitavam em criar um Hadith com o intuito de legitimar um qualquer comportamento ou necessidade de algum indivíduo importante e poderoso. Assim sendo, enquanto nunca houve qualquer divergência em relação ao Texto do Alcorão, têm surgido alguns desacordos em relação à autenticidade ou carácter apócrifo de alguns Ahadith. Na verdade, poder-se-iam ter evitado muitos problemas se não tivesse sido aceite um número tão grande de Aha-dith. Foi exatamente por estas razões que o Profeta (p.e.c.e.) desencorajou a compilação destes Ahadith. Mas os Ahadith tornaram-se necessários a nível sócio- cultural e sócio religioso, em circunstâncias muitíssimo diferentes. Estas necessidades eram de tal forma pre-mentes que se desenvolveu uma doutrina segundo a qual, se um Hadith entrasse em contradição com o Al-corão, o Hadith prevaleceria. Muitas leis da Chari'ah tiveram esta orientação por base. Depois surgiram muitas questões relativas ao fato de o Hadith ser fraco (da'if), ser narrado por apenas um ou vários narradores, de existirem diferentes versões da mesma e de os seus narradores (ravi) serem da'if (fracos), entre outras. Parte da literatura sobre os Ahadith está repleta destas contro-vérsias. Acrescenta-se que diferentes facções se basearam em diferentes Ahadith, para legitimar as suas perspectivas. Resumindo, muitas controvérsias se geraram devido a uma sujeição excessiva em relação aos Aha-dith.
E ainda muitos mais Ahadith foram usados para rebaixar o estatuto das mulheres, na medida em que os ideais e os valores do Alcorão a respeito das mulheres não podiam ser aceites por sociedades que tratavam as mulheres como subordinadas dos homens. Os homens queriam manter a sua superioridade em todas as cir-cunstâncias. Pensavam que tinham poder sobre as mulheres, e muitos versículos do Alcorão eram explicados de acordo com a ética da superioridade masculina. A maioria dos versículos do Alcorão que fala sobre as mulheres não é explicada à luz de outros versículos do Alcorão (a única metodologia fiável para compreender o verdadeiro significado do Alcorão), mas sim com a abordagem dos Ahadith que aviltam as mulheres.
Gostaria de comparar neste artigo os Ahadith acerca das mulheres com versículos do Alcorão, para demonstrar os quão contraditórios entre si são estes versículos do Alcorão e os Ahadith. O Alcorão refere a igual dignidade de homens e mulheres, e até a história de Adão e Eva é contada de uma forma que não culpa, de forma alguma, Eva por ter comido o fruto da árvore da qual Adão estava proibido de se aproximar. O Alcorão fala acerca da criação dos homens e mulheres a partir de um só nafs (alma), enquanto o hadith afirma que Eva foi criada com base numa costela de Adão. O Alcorão declara que foi Adão quem desobedeceu ao seu Senhor e que agiu com ignorância. Assim, o Alcorão afirma: «E Adão desobedeceu ao seu Senhor e foi contrariado». (20:121).
Da mesma forma, todo o discurso do Alcorão acerca das mulheres é baseado nos direitos delas, ao passo que, na Chari'ah, graças à literatura dos Ahadith, todo o discurso se centra nos deveres das mulheres e nos direitos dos homens, algo que se percebeu durante o período da jahiliyyah (ignorância). Era demasiado difícil para os homens aceitar a igual dignidade entre homens e mulheres na sociedade feudal em que as regras da Chari'ah foram compiladas.
O Alcorão atribui igualdade de direitos e de digni-dade a homens e mulheres, mas os textos dos Ahadith estão repletos de Ahadith que contradizem esta perspectiva do Alcorão. Por exemplo, no Bukha-ri, encontramos um hadith que entra em contradição com o versículo 33:35 do Alcorão. O hadith narra o seguinte:
"O Profeta (p.e.c.e.) exortou as mulheres a serem generosas nas suas oferendas, pois quando vislumbrou as chamas do Inferno, constatou que a larga maioria das pessoas atormentadas eram mulheres. As mulheres ficaram furiosas, tendo-se uma delas levantado de imediato para saber a que razão se devia aquilo. - Porque - respondeu ele - as mulheres resmungam muito e são ingratas para com os seus maridos! Mesmo que os pobres passem a vida a fazer coisas por vocês, basta-vos estar aborrecidas com qualquer coisa para dizerem: 'Nunca me fizeste bem nenhum!' E então as mulheres começaram a tirar as alianças energicamente e atirá-las à capa de Bilal." (Bukhari 1.28, Abu Dawud 439).
Repare-se no conteúdo e tom deste hadith. Está repleto de uma atitude machista, sendo que, de acordo com este hadith, as mulheres são ingratas para com os maridos. Para ver como esta ideia é contestada, consulte-se o versículo do Alcorão 33:35, que diz: «Para os homens e mulheres que se submetem ao Islão, para os homens e mulheres crentes, para os homens e mulheres obedientes, para os homens e mulheres verdadeiros, para os homens e mulheres que são pa-cientes, para os homens e mulheres que são humildes, para os homens e mulheres que dão para caridade, para os homens e mulheres que fazem jejum, para os homens e mulheres que preservam a sua castidade e para os homens e mulheres que se empenham no louvor a Allah, para todos eles Allah reservou o perdão e uma grande recompensa».
Veja-se como neste versículo o Alcorão trata da mesma forma homens e mulheres, referindo um igual grau de perdão e iguais recompensas. No hadith atrás narrado, por outro lado, são condenadas ao fogo do Inferno mais mulheres que homens, devido ao facto de serem ingratas em relação aos maridos. O Alcorão não exige em parte nenhuma que a mulher seja obediente ao marido. É ao marido que se adverte para que seja generoso para com a esposa (consultar 2:229) "faz-lhe boa companhia (bi ma'ruf) e trata-a com gentileza" (bi ihsanin).
Também o vestuário dos homens e mulheres é descrito (libaç) (2:187 Está-vos permitido, nas noites de jejum, acercar-vos de vossas mulheres, porque elas são vossas vestimentas e vós o sois delas. ). De acordo com o Alcorão, homens e mulheres são entre si zawj (parte do casal), tal indicando a existência de igual dignidade, amor e respeito e não obediência ou subordinação. O Profeta (p.e.c.e.) nunca tratou nenhuma das suas esposas como subordinada. Não só se limitava a tratá-las com dignidade, mas também aconselhava-se junto delas com frequência acerca de várias questões, seguindo mesmo os conselhos que elas lhe davam. Com efeito, o conselho de Umm Salma (r.a.) que consistia no sacrifício de um animal em Hudaybiya revelou-se muito positivo.
“A MULHER É APENAS MEIA TESTEMUNHA?”
Examinemos mais um hadith que aparenta estar em conformidade com as disposições do Alcorão, mas que, na verdade, não está. O seu autor é Muslim. O hadith é narrado da seguinte forma:
Conta-se que o Profeta (p.e.c.e.) terá dito: “Não conheço mais ninguém, a não serdes vós, com falta de senso comum e em incumprimento para com a religião, mas desprovendo (simultaneamente) o sábio da sua sabedoria". Ao ouvir estas palavras, houve uma mulher que fez o seguinte comentário: - O que tem o nosso senso comum e a nossa prática religiosa de errado? - Ele observou: - A vossa falta de senso comum é provada pelo fato de o senso comum de duas mulheres equivaler ao de um homem; é essa a prova de que têm falta de senso comum. E há noites (e dias) em que não fazem as vossas orações, e também não cumprem o jejum durante o mês do Ramadão (durante o período menstrual); é esse o vosso incumprimento em relação à religião”. (Muslim, 31).
Este hadith apresenta várias falhas. O Alcorão não afirma que a mulher não é uma testemunha na sua plenitude, nem que é desprovida de senso comum. E o mensageiro de Allah (p.e.c.e.) nunca diria palavras que denigram as mulheres com quem se aconselhou em alturas difíceis, tal como foi referido atrás. O Alcorão limita-se a declarar que, quando fazemos um empréstimo, devemos fazer registo dele por escrito, com duas testemunhas do sexo masculino, e no caso de estas não estarem disponíveis, deverá optar-se por ter como testemunhas duas mulheres e um homem, para que, no caso de uma se esquecer, a outra se poder lembrar. (2:282 ".Ó fiéis, quando contrairdes uma dívida por tempo fixo, documentai-a; e que um escriba, na vossa presença, ponha-a fielmente por escrito; que nenhum escriba se negue a escrever, como Deus lhe ensinou. Que o devedor dite, e que tema a Deus, seu Senhor, e nada omita dele (o contrato). Porém, se o devedor for insensato, ou inapto, ou estiver incapacitado a ditar, que seu procurador dite fielmente, por ele. Chamai duas testemunhas masculinas de vossa preferência, a fim de que, se uma delas se esquecer, a outra recordará. Que as testemunhas não se neguem, quando forem requisitadas. Não desdenheis documentar a dívida, seja pequena ou grande, até ao seu vencimento. Este proceder é o mais equitativo aos olhos de Deus, o mais válido para o testemunho e o mais adequado para evitar dúvidas. Tratando-se de comércio determinado, feito de mão em mão, não incorrereis em falta se não o documentardes. Apelai para testemunhas quando mercadejardes, e que o escriba e as testemunhas não seja coagidos; se os coagirdes, cometereis delito. Temei a Deus e Ele vos instruirá, porque é Onisciente".)
Este versículo não declara de forma alguma que a mulher tem falta de senso comum. A mulher poderia ser considerada inexperiente, pois naquela época as mulheres não se dedicavam a transações financeiras. A falta de experiência não pode ser equiparada à ausência de senso comum. Igualmente, se as mulheres não podem fazer preces ou praticar o jejum durante a menstruação, como podem ser esses fatos considerados como "incumprimentos à religião"? Esse é um estado de incapacidade, e não de ausência de crença ou empenho. A crença ou religião está relacionada com a nossa alma e com o nosso coração, e não com a nossa condição física. O nosso Profeta (p.e.c.e.) tinha um grande respeito pelas mulheres e pelas suas esposas. É impensável que ele dissesse este tipo de coisas aviltantes acerca das mulheres. Ele amava profundamente Khadija, Fatima e Ayisha (r.a.). Todas estas mulheres eram extremamente inteligentes e grandes defensoras do Islão. Com efeito, eram mais consistentes na sua crença no Islão do que muitos homens. Todo o mundo muçulmano respeita bastante estas mulheres. A verdade é que o Islão deu um estatuto de grande elevação às mulheres e garantiu os seus direitos numa altura em que, em todo o mundo, elas não tinham quaisquer direitos. Com efeito, foi esta tendência de aviltamento das mulheres que se refletiu nestes Ahadith.
“AS MULHERES NO GOVERNO DÃO AZAR ÀQUE-LES QUE SÃO POR ELAS GOVERNADOS”
Encontramos outro hadith de Bukhari que é citada com frequência contra o facto de as mulheres se tornarem governantes de países. Com efeito, Bukhari relata três tradições associadas a este episódio, duas das quais se encontram no capítulo sobre "A Carta do Profeta a Chosroe e César". O hadith de Abu Bakra tem o nº 4425. O hadith anterior, o nº. 4424, é relatado por Ibn Abbas, que afirmou o seguinte: "O Profeta de Allah enviou Abdullah Ibn Huzaifa com a sua carta para Chosroe. Quando Chosroe a leu, rasgou-a. Creio que Bin Musay-yab disse: Depois o Profeta rezou a Allah para que os destruísse completamente. O terceiro hadith tem o nº 6639 e é relatado no Bukhari no capítulo que versa sobre "como era o juramento do Profeta", narrando o seguinte: "Quando César morrer, nenhum César lhe sucederá. Quando Chosroe morrer, nenhum Chosroe lhe sucederá."
Bukhari (4425) fala do seguinte hadith de Abu Bakra: "Allah concedeu-me bastantes benefícios durante a batalha do Camelo, proferindo apenas uma palavra (ou expressão). Quando o Profeta (p.e.c.e.) ficou a saber que os persas tinham escolhido a filha de Chosroe como sua governante, disse: Uma nação que coloca os seus assuntos nas mãos de uma mulher nunca poderá prosperar!"
Agora é do conhecimento de todos que Abu Bakra relatou este hadith após a batalha do Camelo, na qual participou Hadrat Ayisha (r.a.), tendo como alvo Hazrat Ali (r.a). Este hadith surge apenas na narração de Abu Bakra, que desejava governar uma das províncias e queria agradar a Hazrat Ali. Abu Bakra tinha, como é óbvio, um objetivo quando narrou este hadith.
A perspectiva que se apresenta é bastante contraditória em relação ao Alcorão, na medida em que este apoia a liderança da Rainha de Sheba (Bilquis), que rejeitou os conselhos dos seus conselheiros homens se estabeleceu a paz com o Profeta Salomão (Sulaiman). Consultar os versículos 32 a 35 do Capítulo 27 "32.Disse mais: Ó chefes, aconselhai-me neste problema, posto que nada decidirei sem a vossa aprovação. 33.Responderam: Somos poderosos e temíveis; não obstante, o assunto te incumbe; considera, pois, o que hás de ordenar-nos. 34.Disse ela: Quando os reis invadem a cidade, devastam-na e aviltam os seus nobres habitantes; assim farão conosco. 35.Porém, eu lhes enviarei presente, e esperarei, para ver com que voltarão os emissários". Quando Bilquis pediu a opinião a um dos seus conselheiros homens sobre se deveria declarar guerra ou paz a Sulaiman, eles aconselharam-na a lutar e a não se render. Mas ela ignorou-os e decidiu estabelecer a paz, defendendo: "Decerto que os reis, quando invadem uma cidade, a arruínam, tornando os seus cidadãos mais nobres nos mais humildes; e assim farão eles."
Assim se verifica que o Alcorão defende a sabedoria de uma mulher em se abster de lutar e em estabelecer a paz com um governante mais poderoso, salvando o país da ruína. Mas o hadith citado atrás defende exatamente o contrário, afirmando que se uma mulher se tornar governante, tal irá revelar-se desastroso para o país. O hadith sugere então que o Profeta (p.e.c.e.) contradiz a revelação de Allah, o que é inconcebível. A única conclusão é que o narrador tinha as suas próprias razões para narrar o hadith, ou então não compreendia em absoluto aquilo que o Profeta disse. Deixa-se a conclusão a cargo dos leitores.
Consideram-se ainda mais chocantes os Ahadith que versam sobre as mulheres e que são atribuídos ao Profeta (p.e.c.e.).
Um desses Ahadith encontra-se no Sahih Bukhari e foi narrado por Sahl ibn Sa'de, da seguinte forma: "Um mau agoiro foi revelado ao Profeta (p.e.c.e.). O Profeta disse: 'Se existe um mau agoiro em qualquer lugar, o mesmo está na casa, na mulher e no cavalo. '"
Este hadith equipara a mulher a uma casa e a um cavalo. Não pode haver qualquer comparação entre os três. Tanto a casa como o cavalo são, aliás, extremamente úteis para os seres humanos, facilitando-lhes o seu dia-a-dia e as suas deslocações. Uma casa é uma necessidade básica do ser humano e o cavalo era necessário àqueles que viajavam, sendo, por isso, altamente valorizados. Os cavalos eram também usados nas guerras, graças ao fato de os seus movimentos serem bastante velozes. Estas teorias foram o produto de um tipo de mente muito fraca e, infelizmente, foram atribuídas a uma mente que Allah havia agraciado com os mais elevados dos pensamentos. Ele escolhera-o como Seu Profeta e Mensageiro. É impensável que ele dissesse este tipo de coisas.
Existe um hadith interessante, que se encontra no Bukhari e que foi narrado por Ayisha (r.a.). Este hadith relata o seguinte: as coisas que invalidam as orações foram-me referidas (a Ayisha). Afirmaram: "a oração é invalidada por um cão, um burro e uma mulher (no caso de passarem à frente de alguém que esteja a fazer as suas orações) ".
Ayisha (r.a.) declarou: "Transformaram-nos (ou seja, às mulheres) em cães. Eu vi o Profeta (p.e.c.e) rezar enquanto estava deitada na cama, entre ele e a Qiblah. Quando precisava de alguma coisa, saía de mansinho, pois não gostava de passar pela frente dele."
Podemos aqui ver a forma como alguns narradores equipararam mulheres a cães e burros, e como Ayisha os desafiou. Isto mostra como os homens tinham pouca consideração pelas mulheres, tendo atribuído os seus pensamentos desprezíveis ao Profeta (p.e.c.e.). Pode nem sempre haver mulheres como Ayisha (r.a.), que desafiem estes pensamentos medíocres, sendo assim os Ahadith passíveis de aceitação sem uma abordagem crítica.
Da mesma forma, encontramos no Sahih Bukhari um hadith narrado por Osamah, que volta a ser totalmente contraditório em relação ao que diz o Alcorão. O hadith relata: "E aconselho-vos a tomarem conta das mulheres, pois elas foram criadas de uma costela, e a parte mais inclinada da costela é a parte de cima. Se a tentarem endireitar, ela vai partir, e se a deixarem incólume, permanecerá torta. Por isso, insisto em que tomem conta das mulheres."
Este hadith é muito depreciativo em relação às mulheres, tal como outros ahadith do mesmo tipo. Contra-diz totalmente o Alcorão, onde não se menciona em parte alguma a criação de Eva a partir de uma costela de Adão. Este hadith foi igualmente criado para provar a inferioridade das mulheres. Em todos os versículos do Alcorão onde se fala sobre mulheres, não existe um único versículo que denigra as mulheres desta forma ou que prove a sua inferioridade seja em que aspecto for.
Estes eram preconceitos sociais dominantes, por parte dos homens, em relação às mulheres, que os levaram a criar este tipo de ahadith para as poderem subjugar e para que as mulheres não pudessem usar o Alcorão para reclamar a sua igualdade em relação aos homens. O Alcorão foi revelado ao Profeta (p.e.c.e.) para que ele pudesse conferir igual dignidade e estatuto às mulheres, mas a sociedade não estava, de qualquer forma, preparada para tal, tendo tentado rebaixar as mulheres através da criação destes ahadith. Uma vez que não as podiam controlar através do Alcorão, recorreram a outra arma para denegrir o estatuto das mulheres.
É triste que alguns dos nossos Ulema ainda não estejam preparados para avaliar criticamente estes ahadith machistas. Pelo contrário, continuam a citá-los, de modo a manter o estatuto inferior das mulheres na sociedade, subjugando-as aos homens. É precisamente por esta razão que os não-muçulmanos têm uma opinião muito negativa em relação ao Islão e ao fato de o Islão ter "suprimido" a dignidade e estatuto das mulheres.
Chegou a hora de as mulheres muçulmanas avaliarem criticamente estes Ahadith e refutarem os fatwas que os Ulema publicaram com base em Ahadith deste tipo. Precisamos que surjam grandes escolásticas entre as mulheres, que possam ter uma postura independente.
■Fonte: Institute of Islamic Studies, dirigido por Teólogo Islâmico Prof. Asghar Ali Engineer Tradução e adaptação em português por M. Yiossuf Adamgy - Director da Revista Islâmica Portuguesa Al Furqán.
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