Por Dr. Abdellatif Charafi
Este artigo pretende ser uma viagem no tempo a um período muito especial da história mundial: do nono ao décimo terceiro séculos, na Andaluzia, e mais especificamente em Córdoba, onde um milhão de pessoas viviam na maior cidade da Europa, o centro cultural daquela época. Não havia separação rigorosa entre o estudo científico, a sabedoria e a fé. O Oriente estava separado do Ocidente, e nem os muçulmanos dos judeus ou cristãos. Na verdade, foi lá que o Renascimento começou e de lá se expandiu.
Ao examinar a trajetória do Islam na Andaluzia, o objetivo não é louvar um morto ilustre e sim reintroduzir em nossa vida a afirmação dos valores absolutos e universais do Islam, sem os quais a sociedade inevitavelmente se desintegrará.
O Mito da Conquista Muçulmana da Espanha
Mas de quinhentos anos se passaram desde que o Islam foi erradicado da Espanha. O acontecimento foi comemorado com esplendor na Expo 92, em Sevilha, durante a qual, os organizadores tentaram nos fazer crer que a Espanha teria sido formada por mais de sete séculos de luta continuada contra o Islam. Mas a derrota dos muçulmanos, em janeiro de 1492, significou uma libertação para os espanhóis? O califado muçulmano foi uma colonização da Península Ibérica?
Quando estudamos a expansão muçulmana na Espanha espantamo-nos com a sua velocidade, seu aspecto e um modo geral pacífico e seu componente civilizacional. Os muçulmanos levaram menos de 3 anos (de 711 a 714) e uma batalha (de Guadalete, perto de Cadiz) para se espalharem por toda a Espanha. Em contraposição a isto, o Profeta Mohammad levou 23 anos (de 610 a 632) e 19 expedições para que toda a Arábia aceitasse o Islam. Esta diferença no tempo e nos esforços para conquistar a Arábia e a Espanha para o Islam deve-se a afinidades teológicas assim como a razões sócio-culturais e político-econômicas que atraíram os espanhóis.
A Arábia pré-islâmica era predominantemente politeísta, com pequenas comunidades de judeus e cristãos e o Islam teve de lutar contra um “mundo sem lei” (jahiliyya) para que prevalecesse o monoteísmo. A Espanha pré-islâmica era cristã com importantes comunidades judaicas. Esta diferença, de acordo com Roger Garaudy, não só explica a rapidez da expansão como seu tipo também.
W. Montgomery Watt, em A History of Islamic Spain, afirma:
“É um equívoco comum que a guerra santa signifique que os muçulmanos tenham dado aos seus opositores uma escolha “entre o Islam e a espada”. Em alguns casos foi assim, mas somente quando os inimigos eram politeístas e adoradores de ídolos. Para judeus, cristãos e outros “Povos do Livro”, isto é, monoteístas com escrituras – uma sentença que foi interpretada muitas vezes de forma liberal – havia uma terceira possibilidade, eles podiam tornar-se um grupo protegido, pagando uma taxa ou tributo aos muçulmanos para usufruírem de autonomia interna.”
O caso da Espanha não é, portanto, excepcional e isto se deve à verdadeira essência do Islam.
O Profeta nunca pretendeu criar uma nova religião: “Dize-lhes: Não sou um inovador entre os mensageiros.” (46:9) “Nada te foi revelado que não tivesse sido aos mensageiros antes de ti.” (41:43
Ele veio para lembrar às pessoas a Religião Primordial: “Dizei: Cremos em Deus, no que nos foi revelado, no que foi revelado a Abraão, a Ismael, a Isaac, a Jacó e às tribos; no que foi concedido a Moisés e a Jesus e no que foi dado aos profetas por seu Senhor; não fazemos distinção alguma entre eles e nos submetemos a Ele.” (2:136)
O Islam veio para confirmar as mensagens anteriores, para purificá-las das alterações históricas e para completá-las. Diz o Alcorão: “Porém, se estás em dúvida sobre o que te temos revelado, consulta aqueles que leram o Livro antes de ti.” (10:94)
A comunidade muçulmana era uma comunidade aberta, sem distinção para aqueles que acreditavam na unidade e transcendência de Deus.
Além disso, na Península Ibérica irrompeu uma guerra civil entre os cristãos trinitários, que aceitavam a Trindade e a divindade de Jesus, e os cristãos arianos, que não viam Jesus como Deus e sim como um profeta inspirado por Deus. O Concílio de Nicéia, em 325, convocado pelo imperador Constantino para unificar seu império ideologicamente, impôs o dogma da Trindade e condenou os ensinamentos de Anus de Alexandria, que não aceitava tais dogmas. O conflito surgiu quando, em 709, os cristãos unitários declararam Roderick rei. O arcebispo de Sevilha se opôs a ele e os habitantes da atual Andaluzia (Bétique) se revoltaram contra seu governo. Quando Roderick invadiu a Andaluzia, a população procurou por ajuda. O competente general bérbere, Tariq ibn Ziyad cruzou o estreito de Algeciras, e aconteceu a batalha em Guadalete, próxima a Cadiz. Os bispos de Sevilha e de Toledo se juntaram ao exército muçulmano.
Os camponeses tinham uma vida difícil, eram mal tratados e viviam escravizados. A pobreza, corrupção, ignorância e instabilidade estavam por toda a parte. Mesmo os homens livres se sentiam desprestigiados. Havia muitos descontentes e as pessoas comuns viram os muçulmanos como seus libertadores e lhes prestaram todo o apoio possível. Os judeus, que tinham sido perseguidos por muito tempo sob o governo dos visigodos (por exemplo, um decreto especial de 694 previa a escravização de todos os que não aceitassem o batismo), abriram os portões de várias cidades. A satisfação era tão grande e tão disseminada em todas as classes sociais que durante todo o século 8 não se registrou uma única revolta entre os súditos.
Se imaginarmos uma invasão militar, fica difícil compreender como um pequeno exército pôde atravessar toda a Espanha em menos de 3 anos. O historiador Dozy, em Histoire des Musulmans d’Espagne, descreve o envento como uma “coisa boa para a Espanha”, que produziu uma importante revolução social, libertando o país das amarras que prenderam a região por tantos séculos. Os impostos eram muito menores se comparadas àquelas cobrados pelos governos anteriores. Os muçulmanos promoveram uma reforma da terra, tirando do rico e distribuindo-a igualmente aos camponeses e escravos. Os novos proprietários trabalhavam a terra com orgulho. O comércio, livre das limitações e das elevadas taxas que provocavam o seu estrangulamento,floresceu. Os escravos podiam alcançar sua liberdade através de uma compensação justa, algo que trouxe novas energias. Todas estas medidas, diz Dozy, criaram um estado de bem-estar que justificava a boa recepção que tiveram os muçulmanos.
O grande escritor espanhol Blasco Ibanez, em Dans l’ombre de la cathédrale, fala de uma “expedição civilizacional” chegando do sul e não de uma conquista. Para ibanez, não foi uma invasão imposta pelas armas, era uma nova sociedade cujas raízes vigorosas cresciam por toda a parte. Ao descrever os muçulmanos conquistadores, diz ele: ‘O princípio de liberdade de consciência, a pedra angular da grandeza das nações, era muito caro a eles. Nas cidades em que governaram, eles aceitaram a igreja dos cristãos e a sinagoga dos judeus.’
A História, portanto, mostra que a lenda do muçulmano fanático varrendo a Espanha e impondo o Islam à força da espada é um mito absurdo. A expansão do Islam na Espanha não foi uma conquista militar e sim uma libertação.
O Sentido da Vida na Andaluzia
O sentido da vida e seus objetivos na Andaluzia na época de seu apogeu islâmico, ordenava cada ato do cotidiano, assim como da pesquisa técnica e científica. Gigantes espirituais, como os muçulmanos Ibn Rushd (1126-1198), conhecido no ocidente como Averróes, e Ibn Arabi (1165-1240), ou o filósofo judeu Maimônides (1135-1204), são alguns dos homens que trouxeram mais brilho à mensagem da Andaluzia. Este espírito está por trás de todo progresso científico e técnico das séculos dourados do Islam.
A ciência não foi separada da sabedoria e da fé e nada pode expressar melhor este fato do que o observado por Ibn Rush quando escreve:
“Nossa filosofia não serviria de nada se não fôssemos capazes de ligar estas três coisas conforme tentei fazer em minha ‘Harmonia da Ciência e Religião’:
– A Ciência, baseada na experiência e lógica, para descobrir a razão.
– A Sabedoria, que se reflete no objetivo de toda pesquisa científica para que a nossa vida seja mais bela.
– A Revelação, a do nosso Alcorão, porque somente através da revelação é que conheceremos os objetivos finais de nossa vida e nossa história.”
A unidade da tradição abraâmica e a abordagem crítica da filosofia são expressas com a mesma força no trabalho do filósofo judeu Maimônides, que foi contemporâneo de Ibn Rushd. Diante da Torá, na sinagoga, ele disse:
Se para Ibn Rushd o Livro Sagrado não é a nossa Torá e sim o Alcorão, ambos concordamos no que se refere às contribuições da razão e da revelação. São duas manifestações de uma mesma verdade divina. Existe apenas uma contradição quando um é fiel à leitura literal das escrituras, esquecendo-se de seu significado eterno.
Na Andaluzia, o Islam assume uma nova dimensão com Ibn ‘Arabi, apelido de Muhyi al-Din (aquele que dá sua vida pela fé). O que interessava a Ibn ‘Arabi não era o que o homem fala a respeito de sua fé e sim o que esta fé faz por este homem. Diz ele:
Deus é unidade. A unidade do amor, do amante e do amado. Todo amor é um desejo de união. Todo amor, consciente ou inconsciente, é um amor a Deus.
Testemunhe esta presença de Deus dentro de si, da criação de Deus, que nunca cessa. O ato é uma manifestação exterior de fé. O Islam reconhece todos os profetas e mensageiros do mesmo Deus. Aprenda a descobrir em cada homem a semente de um desejo por Deus, mesmo que sua crença ainda seja fraca e algumas vezes idólatra. Ajude a conduzi-lo para a Luz mais completa.
Ibn Rushd esforçou-se para trazer a luz da mensagem universal do Islam, obscurecido pelas tradições, quando definiu a melhor sociedade como ‘aquela onde toda mulher, toda criança e todo homem recebem todos os meios para desenvolver as possibilidades que Deus concedeu a cada um deles.’ O poder de estabelecer isto não será através de uma teocracia, como a dos cristãos na Europa, um poder de cúmplices ou tiranos religiosos : Deus diz no Alcorão, ‘Ele instilou no homem Seu espírito”. Que Ele viva em cada homem!’
Quando indagado sobre as condições de uma tal sociedade, ele respondeu: ‘Uma sociedade será livre e agradável a Deus quando ninguém agir por medo do Prínicpe ou por medo do Inferno, e nem pelo desejo da recompensa deste mundo ou do Paraíso, e quando ninguém disser: Isto é meu.’
O Islam na Andaluzia produziu vários gigantes espirituais que mostraram que não há futuro para a humanidade que não seja dentro dos valores espirituais que emanam da crença na transcendência e unicidade de Deus. Homens como Ibn Massara, de Córdoba (883-931), para quem o homem era responsável por sua própria história; Ibn Hazm, de Córdoba (994-1064), que foi o pioneiro da história comparativa das religiões; Ibn Gabirol, de Málaga (1020-1070), cujo trabalho fundamental foi a síntese da fé judaica e a filosofia de Ibn Massar; Ibn Bajja (1090-1139), que apresentou a filosofia islâmica de uma forma sistemática; Ibn Tufayl, de Cadiz (1100-1185), cujo tema central foi a relação entre a razão e a fé.
Todos esses homens de conhecimento, sabedoria e fé, permanecem como legado de um passado glorioso, quando o verdadeiro Islam foi pregado e praticado; um tempo do belo exemplo de muçulmanos conquistando fama e respeito; um tempo em que estes povos amantes da paz surgiram porque a injustiça estava sendo praticada e deveria ser combatida em nome de Deus com a força que levou um punhado de fiéis à vitória sobre os exércitos dos incrédulos.
O Estilo de Vida em Andaluzia
A Andaluzia foi singular no que se refere às suas realizações tangíveis em todos os campos da vida humana. O ensino foi enfatizado, marcado por uma fascinação pela ciência, literatura árabe e pelo discurso filosófico sobre a razão e a fé. No mundo criado em terras andaluzas, havia uma prosperidade comercial, prosperidade em termos de consumo e de produtividade e intercâmbio. Havia uma riqueza de informação graças às bibliotecas de Córdoba e uma riqueza de pensamento sobre o significado da vida, de Deus e das coisas materiais. E havia poetas que cantavam todas as formas de riqueza.
Limitar-nos-emos a uma breve descrição das conquistas técnicas e científicas, e a um relato mais detalhado da Mesquita de Córdoba porque é um das primeiras expressões monumentais do governo muçulmano e indiscutivelmente um prédio que mais completamente incorpora a imagem da hegemonia muçulmana na Andaluzia.
Conquistas Técnica e Científica
Quando discutimos o progresso científico da Andaluzia, não podemos separá-lo das contribuições de outras grandes civilizações e nem da sabedoria e fé que inspiraram os esforços de todos os pesquisadores andaluzes: a ciência é Única porque o mundo é Único, o mundo é Único porque Deus é Único. Este princípio de tauhid comandou todos os aspectos da pesquisa científica na Andaluza assim como em outras partes do mundo islâmico, em seu período de apogeu. A seguir, algumas conquistas desta filosofia de vida.
A primeira tentativa de vôo aconteceu em Córdoba com Abu Abbas al-Fernass. Al-Zahrawi, nascido nas proximidades de Córdoba, em 936, foi um dos maiores cirurgiões de todos os tempos. Sua enciclopédia de cirurgia foi usada como uma referência na matéria em todas as universidades da Europa por mais de 500 anos. Al-Zarqalli, que nasceu em Córdoba, inventou o astrolábio: um instrumento que é usado para medir a distância das estrelas acima do horizonte. O astrolábio tornou possível a determinação da posição de uma pessoa no espaço e as horas do dia, para navegar e chamar o fiel para a prece no tempo devido.
Al-Idrisi, que nasceu em Ceuta em 1099, e estudou em Córdoba, desenhou mapas para o rei Roger II, da Sicília, onde ele usou métodos de projeção para passar da sombra esférica da terra para o planisfério, que era muito semelhante àquele usado por Mercator 4 séculos mais tarde.
Os métodos de agricultura e irrigação dos muçulmanos da Espanha foram revelados pelo grande engenheiro italiano, Juanello Turriano, que chegou a Andaluzia para estudar técnicas agrícolas e hidráulicas adotadas no século 11, para resolver seus problemas na Itália do século 16.
A Grande Mesquita de Córdoba
Córdoba merece seu título de ‘a noiva das cidades’ e a ‘jóia do século 10′. A cidade das fábricas e lojas, que atraiu muitos exegetas e produziu os seus próprios. Foi a primeira cidade com iluminação pública da Europa. Foi o centro do ensino e da civilização numa época em que os normandos tinham atacado Paris e os vikings tinham saqueado a Inglaterra. Sua obra prima foi a magnífica mesquita, que é a construção mais famosa da Espanha, depois do palácio de Alhambra, em Granada.
As fundações da mesquita foram construídas por Abd al-Rahman I, em 785, num lugar que tinha sido uma igreja cristã. Desde o tempo da conquista, em 711, a igreja era usada tanto por muçulmanos como por cristãos. Os muçulmanos compraram a igreja por causa do crescimento da população e não por uma questão de intolerância religiosa. Entre 832 e 848, ela foi ampliada, e depois em 912, mais tarde em 961, por al-Hakam II, que construiu seu esplêndido mihrab. Al-Mansur, em 987, dobrou o espaço do salão de orações, que passou a dispor de 600 colunas. Em 1236, ela foi atacada quando Córdoba se rendeu a Ferdinando III, de Castela, e inseriu uma capela e, mais tarde, em 1523, quando uma catedral foi construída no coração da mesquita. Conta-se que o rei Carlos V quando viu a nova catedral disse: ‘Se eu soubesse o que era, não teria dado permissão para que se tocasse no antigo, pois vocês fizeram o que existe em muitos outros lugares e desfizeram o que era único no mundo.’
Como podemos ver, apesar da oposição do governo espanhol ao projeto da UNESCO de mudar a catedral como ela é, sem omitir o menor detalhe (como o templo de Abu Simbel no Egito foi mudado), a Mesquita de Córdoba ainda é o reflexo do melhor da arte muçulmana.
O problema prático enfrentado pelo arquiteto da Mesquita de Córdoba para a construção de seu vasto salão para uma grande comunidade, foi levantar o teto do oratório a uma altura proporcional à extensão do prédio, com a finalidade de dissipar qualquer sentimento depressivo que é sentido quando se entra num parqueamento subterrâneo. As antigas colunas das ruínas do prédio não foram suficientes. Era necessário complementá-las e foi sugerido o exemplo de Damasco, com arcadas de dois níveis. Mas o modelo de Córdoba tem um aspecto realmente surpreendente: as arcadas superiores e inferiores não são parte da parede mas foram reduzidas a pilares e arcos sem qualquer alvenaria intermediária. As arcadas superiores que amparam o teto estão sob os mesmos pilares das arcadas inferiores. Este conceito, sem precedente na história da arquitetura e única na Mesquita de Córdoba é um verdadeiro desafio para o peso e inércia das pedras.
As curvas das duas séries de arcadas elevam-se como palmeira – galhos de um mesmo tronco que repousam sobre uma coluna relativamente delgada, sem parecerem pesadas demais. As arcadas com suas pedras trabalhadas, de várias cores, expressam tal força que dissipam qualquer idéia de peso. Esta expressão em termos estáticos de uma realidade que vai muito além do plano material deve-se ao contorno das arcadas. As inferiores são projetadas na forma de semicírculos, enquanto que as superiores são mais abertas e semicirculares.
Muitos arqueólogos sugeriram que a composição dos arcos usados pelo arquiteto de Córdoba foi inspirada no aqueduto romano de Mérida. no entanto, existe uma diferença fundamental entre as duas construções. O arquiteto romano respeitou a lógica da gravidade, o apoio de uma edificação deve ser proporcional ao seu peso e assim, os arcos superiores devem ser mais leves do que os elementos que as apoiam. Para o arquiteto cordobês – e de um modo geral para toda a arquitetura islâmica, esta regra não funciona. Por que?
Para responder a esta pergunta devemos nos abstrair de considerações técnicas e prestarmos atenção à expressão simbólica do espaço na oração muçulmana, que foi o fator mais importante que o ‘Mestre’ de Córdoba teve que se preocupar. O objetivo não era alcançar uma façanha arquitetônica e sim criar um novo tipo de espaço que parecesse respirar e se expandir a partir de um centro onipresente. Os limites de espaço não têm qualquer função: as paredes do salão de orações desaparecem por trás de uma floresta de arcadas. Sua repetição rigorosa (havia 900 delas na mesquita original) dão um impressão de extensão sem fim.
Interior da Mesquita
Aqui, e espaço é delimitado não por suas fronteiras e sim pelo movimento das arcadas, desde que isto possa ser descrito como movimento. Esta expansão que é tão poderosa na verdade é imóvel. Titus Burckhardt a descreve como sendo ‘uma arte lógica, objetivamente estática mas nunca antropomórfica.’
Devemos a al-Hakam II o maravilhoso mihrab, a obra prima da arte de Córdoba, assim como às várias cúpulas que ficam por trás dele, inclusive suas subestruturas de arcadas entrelaçadas. O nicho deste mihrab, que é muito profundo, é circundado em sua parte superior por um arco que é como uma aparição e uma fonte de luz, de onde as curvas parecem se dilatar como o peito respirando o ar do infinito. Segundo a mais elevada espiritualidade muçulmana, a beleza é um dos “sinais” que evocam a Divina Presença. A incrição acima da sinfonia de cores, em escrita cúfica, proclama a Unicidade de Deus.
O mihrab da Mesquita de Córdoba
A Mesquita de Córdoba é a personificação da mensagem universal do Islam. Mohammad Iqbal em seu poema À Mesquita de Córdoba, escreveu:
Ó! Sagrada Mesquita de Córdoba,
Templo de todos os amantes da arte.
Pérola da verdadeira fé
Santificando o solo andaluz,
Como a própria Sagrada Meca.
Uma beleza tão gloriosa
Só se encontra na terra
No verdadeiro coração muçulmano.
Quem Matou o Islam em Andaluzia?
O ensino filosófico e científico da Andaluzia atravessou os Pireneus e foi irrigar as secas pastagens da vida intelectual européia. Estudantes da Europa ocidental frequentavam as bibliotecas e universidades criadas pelos muçulmanos na Espanha, o que veio a mudar de modo decisivo a mente européia. Não há exagero em se dizer que a civilização ocidental deve sua regeneração à energia intelectual liberada pelo dínamo que foi o Islam. O período de regeneração, que começou em Florença, Itália, no século 16, ficou conhecido como Renascimento. Ele foi o resultado direto de um outro renascimento que começou na universidade de Córdoba, no século 9. Esta verdade de nossa história torna-se mais clara quando aprendemos como ouvir a música que emana das pedras de Córdoba. Há, no entanto, uma diferença fundamental entre os dois ‘renascimentos’: o primeiro que, em Córdoba, foi baseado na fé e tinha a consciência da universalidade do divino; o outro, que começou em Florença, foi um movimento contra Deus com seu projeto fundamental de secularização de todos os aspectos da vida.
As razões que levaram à morte do renascimento cordobês gerado pelo Islam pode ser compreendido melhor pela referência às causas de seu sucesso. O Islam devia seu sucesso espetacular inteiramente aos ensinamentos do Alcorão e dos exemplos (sunnah) do Profeta Mohammad (saw). O vigor ativo do sistema foi neutralizado logo que os muçulmanos relegaram o Alcorão à condição de um tratado de dogmas e a Sunnah tornou-se um mero sistema de leis e uma concha oca sem qualquer significado vivo. Em seu Muqaddima, Ibn Khaldoun condena os métodos de educação praticado por alguns dos fuqaha’ da Andaluzia, quando, segundo ele, ao invés de ajudar o estudante a ‘compreender o conteúdo do livro no qual ele está trabalhando’, eles o forçam a ‘decorá-lo’.
A escola maliquita de pensamento (madhhab) foi tão predominante na Andaluzia a ponto de nenhum outro madhahib ter sido ensinado, bastando conhecer de cór o Muwatta’, de Imam Malik e seus comentários para que um renomado exegeta se tornasse um faqih. Este fechamento da porta do ijtihad (julgamento independente) que teria sido condenado por Imam Malik se ele tivesse presenciado, foi estimulado pela maioria dos governantes de Andaluzia porque significava obediência incondicional ao poder estabelecido. Isto levou a uma degeneração intelectual, o tratamento daqueles gigantes espirituais citado antes comprova isto melhor. Ibn Massar foi forçado a se exilar; Ibn Hazm foi expulso de Maiorca; os livros de Al-Ghazali foram queimados; a biblioteca universal de al-Hakam II foi lançada ao rio; Ibn Tufayl e Ibn Rushd foram expulsos; e Ibn Arabi também. Todos estes atos não foram praticados por cristãos e sim por companheiros muçulmanos! Nada mais foram do que sinais de que esta grande estrutura representada pelo Islam, que tinha resistido a muitas tempestades, tinha alcançado um estágio em que sua vitalidade interior tinha sido minada gradativamente e uma poderosa rajada a tinha extirpado do solo no qual tinha prosperado durante séculos.
Os primeiros conquistadores muçulmanos da Espanha tinham uma missão que tornava impossível para eles serem egoístas, cruéis ou intolerantes. O momento em que perderam seus sucessores, seu espírito desconfiado substituiu sua unidade de propóstio. Em um determinado momento, a Andaluzia chegou a ter doze dinastias muçulmanas. Este foi o sinal do colapso. A sociedade muçulmana começou a representar uma ordem social decadente, incapaz de um crescimento dinâmico e sem capacidade para uma resistência efetiva. Sob tais circunstâncias, é difícil para qualquer sociedade sobreviver a uma ameaça externa mais séria. O governo muçulmano na Península Ibérica começou a afundar por conta da traição dos diversos príncipes muçulmanos, até Granada cair nas mãos dos Cruzados, no dia 2 de janeiro de 1492.
Quando Abu Abdullah, o último rei de Granada olhou para Alhambra pela última vez, vieram lágrimas aos seus olhos. Neste momento, sua mãe, Aisha, disse: ‘Abu Abdullah chora como uma mulher por um reino que não soube defender como um homem’. Mas nossa história deve desempenhar uma função mais inspiradora e orientadora do que ficar remoendo o passado. Quando olhamos essas maravilhas e todos os palácios deixados em Andaluzia, imaginamos: Certamente houve muita injustiça e opressão. Como Abu Dharr disse a Mu’awiya: ‘Ó Mu’awiya! Se você estiver construindo este palácio com seu próprio dinheiro é extravagância, e se for com o dinheiro do povo é traição.’ Não devemos glorificar nosso passado e nossos ancestrais sem fazer caso de seus erros. Nosso estudo da história do Islam deve ser mais objetivo e não uma simples justificativa de todos os atos praticados por aqueles que nos prececederam.
Conclusão
Precisamos lutar para que a tragédia da Andaluzia não se repita. Não devemos nos dirigir às nossas crianças com: Era uma vez a Palestina…, Era uma vez a Bósnia… Precisamos de um verdadeiro Renascimento Islâmico que nos conduza ao Islam eterno e universal. Um Islam que seja o apelo constante para a resistência a toda opressão, porque exclui qualquer submissão que não seja à vontade de Deus e mantém o homem responsável pela realização do mandamento divino na terra. Um Islam, nas palavras de Roger Garaudy, cujos princípios sejam:
1. No campo econômico: Só Deus possui,
2. No campo político: Só Deus ordena,
3.No campo cultural: Só Deus sabe.
Só assim responderemos a este chamado vivo: sem imitar o ocidente e nem imitar o passado.
Referências:
The Holy Qur’an, traduzido e comentado por Abdullah Yusuf Ali.
Ibn Rushd, On the Harmony of Religion and Philosophy, trans. by George F. Hourani, 1960.
Roger Garaudy, ‘For an Islam of the XXth Century’, Relato apresentado na 1a. Conferência Internacional de Muçulmanos da Europa, Sevilha, 18-21/7/85.
Roger Garaudy, L’ Islam, en Occident, Editions l’Harmattan, 1987.
Khola Hassan, The Crumbling Minaret of Spain, Ta- Ha Publishers, Londres, 1988.
Livreto sobre a Torre de Calahora, em Córdoba, 1988.
Ali Shariati, And Once Again Abu Dharr, trans. por Laleh Bakhtiar e Hussain Salih, The Abu Dharr Foundation, Teerã, 1985.
Titus Burckhardt, Art of Islam, World of Islam Festival Trust, Londres, 1976.
J. D. Dodds (ed), Al-Andalus, The Art of Islamic Spain, The Metropolitan Museum of Art, New York, 1992.
W. Montgomery Watt, A History of Islamic Spain, Edinburgh University Press, Edinburgh, 1967.
(Atualmente, o autor é um Pesquisador Associado, na Escola de Estudos Matemáticos, da Universidade de Portsmouth. Ele obteve seu PhD em Matemática Computacional no Wessex Institute of Technology, Southhampton, e um BSc em Matemática Pura na Ecole Normale Supérieure of Rabat, Marrocos.)
Disponível em:
http://sbmrj.org.br/Historia-andaluzia.htm